We who must die soon, or so it seems to me, should chase our memories back, standing, when they are found, enough apart not to be too near what they once meant. (…) As I have said it is wrong to try to recreate days that are done. All one can do is search them out and put them down as close as possible to what they now seem (…), even if bringing back what is painful still warms a sense of shame as though the note, so distant it may now be no louder than a breath, will blow those embers to a flame we have almost let die to ashes in cold forgetfulness. ()

Assim escreve Henry Green na sua autobiografia, Pack My Bag (), cuja conceção partiu da crença do autor de que não sobreviveria à Segunda Guerra Mundial. No entanto, Green não só sobreviveu ao conflito, como ainda publicou dois livros onde ficcionou as experiências de combatentes: Caught () e Back (). Ambos evidenciaram o interesse do autor, em consonância com as preocupações da época, pelos mecanismos da memória quando afetados por períodos de grande perturbação e angústia. Atendendo ao conteúdo mais diretamente focado nas consequências do stress pós-traumático em Back, esta obra será o objeto de estudo do presente ensaio. Nele será explorado o papel da rememoração e do esquecimento no tratamento de sobreviventes, que procuraram encontrar uma identidade estável num mundo governado pelo caos e a incerteza.

1. Contextualização do romance

Publicado um ano após o fim da guerra, Back herda o tropo do “regresso do soldado” de vários romances que o precederam, tais como The Return of the Soldier (1918) de Rebecca West, Soldier’s Home (1925) de Ernest Hemingway e Soldiers’ Pay (1926) de William Faulkner. Como David Copeland salienta, a história desenrola-se a partir de um enredo genérico em que as próprias personagens reconhecem em Charley Summers, o protagonista do romance, o estereótipo do soldado mobilizado que retorna a casa, suportando graves feridas físicas e psicológicas ().

Aquando da sua chegada a Inglaterra, após passar uma longa temporada como prisioneiro das forças alemãs, Charley é informado de que a sua amada Rose perecera durante a sua ausência. À sua perna dilacerada em combate, acrescenta-se o pesar pela perda da sua única ligação com o mundo exterior, um mundo ao qual não pertence enquanto herói de guerra ou civil. A relação de Charley com o presente e o futuro, tal como a sua perna de madeira, é apenas um substituto inadequado para algo irrecuperável: o passado, idealizado e transformado em monumento, mesmo quando ressurge vividamente no dia-a-dia. Um bando de gansos a levantar voo, por exemplo, recordam Charley de uma granada que estourara galhos pelo ar no campo de batalha, colocando-o numa posição de alerta. Porém, ele não segura esta memória, que também voa para além do seu alcance:

So, while the geese quietened, he felt what he had seen until the silence which followed, when he at once forgot.

But there was left him an idea that he had been warned. ()

Desta forma, as memórias suscitadas pelos traumas da guerra caem imediatamente no oblívio, ainda que afetem Charley num nível inconsciente e o deixem num estado de ansiedade. Como nos é relatado: “He might have been watching for a trap, who had lost his leg in France for not noticing the gun beneath a rose” (). Apesar das pistas semânticas e dos estímulos externos, Charley não consegue recuperar e processar as suas memórias, levando a que a sua mente opere sob falsas suposições.

Edward Stokes refere que Back é único entre os romances de Green, pois nele o autor abdica do seu habitual distanciamento e mantém-se sempre perto dos nervos e da consciência de uma única personagem (). Isto leva a que a perspetiva enviesada de Charley seja acentuada e que o leitor se permita deambular pelos labirintos da mente que o protagonista tentativamente atravessa. Stokes sublinha ainda que o romance pode ser encarado como uma subversão do Romance da Rosa (), um poema medieval, escrito por Guilherme de Lorris e Jean de Meun, centrado no tema do amor. Tal como em Back, no poema cortês a palavra “rosa” dá simultaneamente nome à amada, a quem o narrador se dirige, e funciona como símbolo da paixão e da sexualidade feminina. É ainda pertinente salientar que o Romance da Rosa abre com um comentário do narrador em relação aos sonhos, acreditando que estes refletem verdades do mundo consciente e que não constituem apenas fábulas ou mentiras. Tal como o cavaleiro em busca da sua amada, Charley entra num aparente sonho alegórico, igualmente enclausurado num jardim funéreo onde abundam as rosas:

For, climbing around and up these trees of mourning, was rose after rose after rose (…). The graveyard he had never entered. But he came now to visit because someone he loved, a woman, who, above all at night, had been in his feelings when he was behind barbed wire, had been put here while he was away, and her name, of all names, was Rose. ()

Deste modo, o leitor entra dentro do mundo de Charley como entra num sonho, predisposto à realidade apresentada, mas ganhando consciência da absurdidade da sua narrativa assim que despida da sua pretensão de objetividade. Freud, no seu estudo da formação de sintomas, compara este processo ao da construção de sonhos, comentando: “O próprio estado de sono barra a passagem para a realidade. Vemos, pois, que o escape da libido em condições de conflito é tornado possível pela presença de fixações”, mais especificamente, “fixações de que o ego no passado se tinha protegido por meio de recalcamento” (). Note-se, na passagem acima destacada, que Charley inconscientemente associa a sua experiência no campo de prisioneiros com Rose. Ambas as memórias causam desprazer e dor, por vezes mesmo psicossomática, em Charley. Por esse motivo, ele retorna à única fixação positiva durante esses anos, a sua relação com Rose, reprimindo a lembrança da sua morte e rejeitando-a. O próprio Charley apercebe-se dos seus problemas:

The idea had been to make the clock’s hands go round. And now that he’d come, he told himself, all he was after was to turn them back, the fool, only to find roses grown between the minutes and the hours, and so entwined that the hands were stuck. ()

Ao tentar virar os ponteiros do relógio, Charley bloqueia-os, e fica estagnado com as rosas simbólicas que o prendem a uma época longínqua. Como nota Barbara H. Brothers: “Memory does not reunite him with the flow of life; it isolates him (…) and the past remains elusive, forever beyond our grasp” (). Charlie remete-se à introspeção, retornando sistematicamente ao mesmo jardim de rosas, um lieu de mémoire (cf. ) que não é material, mas simbólico. Podemos considerar este lugar como uma utopia que sustenta Charley durante a guerra e que substitui o campo de prisioneiros. Porém, em última instância, estes lugares encontram-se inextricavelmente unidos, explicando o motivo pelo qual o trauma de Charley emerge a cada menção de Rose. Afinal, os lugares de memória são capazes de se metamorfosearem e produzirem vários significados, com um intuito muito específico: “to stop time, to block the work of forgetting” (). A única saída para Charley, portanto, é livrar-se das rosas que estagnam os ponteiros do relógio, possibilitando, por fim, o seu encontro com a realidade.

2. Psicopatologias: confabulações e delírios

O ponto de viragem do romance ocorre quando Charley conhece Nancy Whitmore, uma jovem viúva cuja aparência física se assemelha tanto à de Rose que ele perde os seus sentidos quando a vê pela primeira vez. É revelado, posteriormente, que Nancy é a filha ilegítima do pai de Rose, e, portanto, sua meia-irmã. Não obstante os vários indícios que apontam para o facto de Nancy não ser Rose, e da advertência da sua vizinha de que “[o]nce you start on coincidences (…) there’s no end to those things” (), Charley não aceita a coincidência como uma explicação plausível. Assim, ele convence-se de que Rose não falecera enquanto ele estava em França, mas que, na realidade, teria fingido a sua própria morte para encobrir os seus relacionamentos promíscuos.

Apesar de várias pessoas reconhecerem as semelhanças entre Nancy e Rose, são facilmente capazes de distingui-las. Charley, por sua vez, não só cria narrativas fantásticas acerca das irmãs, como também confabulações; isto é, memórias falsas que são apresentadas, sem segundas intenções, como verdadeiras. As confabulações espontâneas podem derivar de: confusões no espaço temporal; uma falta de monotorização em memórias recuperadas; predisposições motivacionais e emocionais; e, por fim, respostas a deixas sociais e ambientais que não são verificadas ou reprimidas (cf. ). O parâmetro que suscita mais interesse para os propósitos deste ensaio é o terceiro, como será demonstrado adiante. Por enquanto, é relevante verificar que um estudo acerca de inclinações pessoais na criação de confabulações concluiu o seguinte:

(…) [T]he content of confabulation primarily reflects the ease with which generic memories and premorbid routines and activities are retrieved from a dysfunctional memory system coupled with a personal bias to accept memories that concur with (or inflate) past self-representations (whether positive or negative), thus serving the purpose of maintaining a consistent self-concept in the face of changing reality. ()

Assim, as confabulações pretendem conceder estabilidade emocional ao criar um forte sentido de identidade baseado em memórias fictícias, as quais reforçam os interesses e as motivações de quem as cria. Retomando as palavras de Freud, “a neurose não recusa a realidade, apenas a ignora; a psicose recusa a realidade e tenta substituí-la” (). No caso de Charley, podemos ser mais específicos: “O indivíduo estava sadio enquanto [a] sua necessidade amorosa estava [a ser] satisfeita por um objeto real no mundo exterior; torna-se neurótico quando esse objeto lhe for subtraído, sem que se encontre um substituto para ele” (). Assim, Charley, na sua perturbação psicológica, cria memórias alternativas de forma a compreender a realidade que ele próprio cria. Um exemplo disto é a leitura que ele faz das cartas de Rose. Analisando esta cena, Stephen Shapiro considera que Charley reformula a personalidade de Rose, pois a Rose verdadeira, a que lhe escrevia cartas de amor insípidas e vulgares, não corresponde à imagem romantizada que as suas memórias evocam (). Ao enviar estas cartas a um perito em caligrafia (para comprovar que Nancy é, de facto, Rose), Charley recorta-as de forma que ninguém mais possa ter acesso a elas. Contudo, o que sobra é uma montagem sem sentido: “Dear / go down to Redham for me and / tell them how you saw / those mules / coming up to London” (). Podemos considerar esta edição como sintomática da mente de Charley—tal como as cartas originais, as memórias intactas são modificadas até se tornarem irreconhecíveis e ininteligíveis.

A carta pode ainda ser encarada como uma paródia do fluxo de consciência preconizado pelos primeiros modernistas, cuja abordagem “was reinforced or suggested by Freudian and Jungian psychology” (). Tal como muitos modernistas, Green tinha uma relação complicada com as ciências cognitivas. Shepley remarca: “Green is often playful when alluding to psychologists and psychoanalysts” (); porém, estas ironias refletem sérios avisos sobre o tratamento impróprio de pacientes reais. Entenda-se que, embora as teorias de Freud e Jung sejam questionadas e mesmo rejeitadas pela psicologia moderna, estas foram essenciais na demonstração de que a razão não é o centro da psique. Podemos, então, reconhecer a relevância da psicanálise no panorama literário da época e, concomitantemente, problematizar a sua obsessão com o retorno ao passado. Como sublinha Brothers: “Green’s ironic treatment of the presentness of the past challenges the concept that man can know himself by listening to his inner voice and rediscovering the past” (). As confabulações demonstram precisamente isto—são marcas do inconsciente ingovernável que o nosso pré-consciente censura, reprime ou interpreta, por vezes, de forma errónea, mesmo em pessoas sãs. Como James explica a Nancy: “My dear, this is the war. Everything’s been a long time. Why only the other day in my paper I read where a doctor man gave as his opinion that we were none of us normal” ().

Na verdade, a psicopatologia de Charley é ainda mais particular e grave do que uma simples tendência para confabular, pois ele aparenta sofrer de um delírio designado por Síndrome de Capgras. Os pacientes afetados por esta condição possuem uma crença falsa de que alguém que conhecem foi substituído por um sósia. Todavia, como Kopelman relembra, certas ilusões, como ilusões de erros de identificação, podem coincidir com ou evoluir a partir de confabulações (). Assim sendo, Charley, a partir das suas memórias, cria uma narrativa falsa em função da sua incapacidade de processamento cognitivo e rejeição da realidade. Deste modo, ele acaba por “escrever” uma nova Rose, ao mesmo tempo que desumaniza Nancy e a transforma numa “walking memory” (). A partir do momento em que a sua reescrita se torna cada vez mais errática, Charley chega a um momento de crise em que acredita que existe uma conspiração contra ele, e teme perder a sua razão.

3. A memória escrita

Para ajudar Charley, o marido de Rose, James, envia-lhe uma revista de literatura onde encontra uma história semelhante à sua. No artigo de Marius Hentea acerca dos duplos ficcionais em Back, o autor aloca especial ênfase nesta secção, que efetivamente corta a história a meio (). O trecho em questão é uma tradução da carta da Marquesa de Créquy ao seu neto, publicada na sua autobiografia Souvenirs de la Marquise de Créquy (). Nela, a Marquesa relata a história de Sophie Septimanie de Richelieu, cujo amante morrera durante uma batalha. Anos mais tarde, ela desmaia ao conhecer o meio-irmão do seu amado, a sua imagem idêntica, acabando por se apaixonar por ele.

Hentea recorda que um aspeto ignorado pelos críticos é de que esta carta, para além de estabelecer um paralelo com o dilema de Charley, é na realidade um documento forjado (). A escolha das Souvenirs, por si, reforça o efeito de mise en abyme na obra, encaixando narrativas umas dentro das outras num emaranhado de coincidências (basta relembrar que a perna de madeira de Charley é descrita como uma “souvenir he had brought back from France” [; itálico nosso]). No próprio texto autobiográfico encontramos uma narradora homodiegética e limitada, que fornece a sua visão subjetiva face a uma história que testemunhou. Como Santos e Torga esclarecem, “[a] representação do vivencial no todo da produção autobiográfica não se dá numa relação fidedigna, mas incorre (…) numa refração do que uma vez aconteceu e marca a história corrente de uma dada subjetividade” ().

À ambiguidade narrativa, acrescenta-se a incerteza relacionada com a tradução do francês oitocentista para o inglês moderno. O excerto termina com a seguinte passagem:

Nor can I ever forget her last moments when, with both lovers gone, she seemed, as she in her turn lay dying before my eyes, to fuse the memory of these two men into one, into one true lover. ()

A fusão corpórea entre dois amantes contrasta com o texto original, onde a memória dos dois irmãos “était confondu dans un même sentiment de fidélité si naïve et si tendre!” (). Copeland associa esta decisão com a necessidade de Green retomar o corpo como símbolo de fragmentação (), mas as alterações são acrescidas de significado precisamente pelas camadas que se criam entre a história original e o que nos é apresentado—a verdadeira história de Septimanie é contada por um forjador que assume a voz da Marquesa de Créquy, por sua vez distorcida pelas cisões e tradução embelezada de Green. Deste modo, este excerto surge em Back como uma nova lente que separa as duas metades da história: a primeira distorcida pela próxima associação da narração com Charley e a segunda tornada mais nítida pelo aviso concedido ao leitor de que a história serve os propósitos de quem a escreve. Isto é reforçado pela cena seguinte, em que o instinto de Charley, após receber uma carta no trabalho, é duvidar da sua autenticidade e perguntar: “You don’t consider someone may have forged it?” (). A resposta do seu chefe é esclarecedora: “Truth or lies, it’s written here, Summers” ()—subentenda-se, portanto, que o que fica escrito passa a ser verdade, dificultando a busca de Charley pela realidade objetiva.

A passagem evidencia ainda dois dos temas centrais do romance: o duplo e a duplicidade. Ao início, Charley desvaloriza a história de Septimanie e da sua vizinha, a Sra. Frazier, que lhe relatara uma ocasião em que quase desmaiara ao ver duas pessoas idênticas (). Ele não assimila nenhuma destas histórias conscientemente, mas demonstra um grande alívio após as ouvir: no seguimento da conversa com a vizinha, Charley esquece-se de Rose e começa a olhar para outras mulheres, e depois de ler o excerto “he had his first good night’s rest for weeks” ().

Hentea recorda ainda que James não sabe se a revisita literária que envia a Charley era lida por Rose ou pela sua irmã, notando:

This double source of the memoir plays into the novel’s intense doubling of events and characters, and the Freudian undertone of mistaking wife with sister is not incidental, as the ambiguous sexual dynamics of mothers and daughters are a constant source of humour and despair in Back. ()

Apesar de Freud relacionar o Doppelgänger com o inquietante,—o que é, ao mesmo tempo, estranho e familiar—a duplicação do problema de Charley, que exibe uma tendência para repetir comportamentos, ajuda-o, eventualmente, a ultrapassar os seus traumas ao normalizá-los. É neste retorno à infância, se desejarmos evocar a teoria do complexo de Édipo, que Charley também consegue “digerir” o presente e conciliar as figuras femininas da sua vida com o seu desejo simultâneo por segurança maternal e satisfação sexual.

4. Esquecimento motivado

Outra personagem que espelha a condição de Charley é a Sra. Grant, mãe da falecida Rose. Quando Charley visita os Grant pela primeira vez depois de regressar, o Sr. Grant avisa-o de que a sua mulher sofre de surtos de amnésia. Tal como Charley confunde Nancy com Rose, a Sra. Grant pensa que Charley é o seu falecido irmão John. Porém, quando o Sr. Grant tem um AVC, a Sra. Grant apresenta uma recuperação impressionante, revertendo os papéis de ambos: o Sr. Grant passa a ser o paciente e ela a cuidadora.

Numa conversa com o médico, Charley procura compreender esta instabilidade da memória da Sra. Grant:

“When I was down, before he fell ill, she didn’t recognize me,” Charley said.

“Perfectly natural in her condition at the time,” the doctor replied. “I’ve a number of cases like that, now. Comes from the bombing. After you’ve reached a certain age, as you’ll find when you get there, nature provides her own defence, she’s merciful, she draws a black-out over what she doesn’t want remembered. Or rather the nervous system rejects what is surplus to its immediate requirements. But in a crisis everything is thrown overboard, of course. She recognized you today because of the shock Mr. Grant’s health has been to her system. But we’ve got to get assistance to her, or she may slip back.” ()

No entanto, quando Charley finalmente confronta a Sra. Grant com a sua visita onde ela não o reconhecera, recebe uma reação inesperada:

“I came down, d’you recollect?” he said, to get her off Rose. “I don’t know whether I do or I don’t,” she replied, and he was horrified to find a sudden look of sly cunning begin to spread over her placid face. ()

O que inicialmente se assumia ser uma ilusão ou confabulação, revela-se uma possível fabricação. Freud acreditava que “[m]etade do mistério da amnésia histérica fica resolvido, se dissermos que os histéricos não sabem o que não querem saber” (); tal parece ser verdade no caso da Sra. Grant. Os cuidados prestados ao seu marido, que Charley acreditava serem “innocently carried out” (), surgem aqui como atos de vingança contra o mesmo, pela forma como a traíra e rebaixara nos seus períodos mais débeis. Como James refere: “Life has a funny way of getting back at us” ().

A atitude da Sra. Grant corresponde ainda a um desejo de evitar a realidade, ignorando-a ou substituindo-a por uma mais adequada às suas necessidades, espelhando a condição de Charley. No seu artigo “Seven Types of Forgetting”, Paul Connerton inclui o silêncio dos humilhados como um dos sete tipos mais comuns de esquecimento. Os soldados mutilados e traumatizados não relembram o heroísmo da guerra, mas sim a vergonha e o horror das atrocidades nela cometidas, e, por esse motivo, caíram no oblívio da memória coletiva: “They were dismembered – not remembered – men” ().

Assim como Charley se esquece do seu passado, também outros o ignoram, fingindo esquecimento. Como consequência, as suas memórias são codificadas consoante a sua lenta assimilação do que lhe acontecera em França e na Alemanha. O zumbido dos motores dos aviões recorda-o de um enxame de vespas: “It was as though, at a secret signal, every bomber in England, at the call of the queen, had taken off to go hugely hornet swarming, and on barbed wire” (); ao lembrar-se do campo de prisioneiros, Charley vê-se a si próprio como um macaco: “He began to cry, in his self pity seeing himself again with his hands, like a monkey’s, hung up on the barbed wire which had confined him within the camp” (); por fim, a única recordação que ele verbaliza dessa experiência traumática, também é associada a um animal:

Then he did tell her something. It had suddenly come on the tip of his tongue.

“I had a mouse out there,” he said.

She had a quick inkling of this. “And the guards took it away from you?” she asked, as if to a child. But he did not notice.

“No, I had it in a cage I made,” he said. ()

É uma admissão anticlimática, mas também surpreendente pelas várias recusas de Charley, ao longo do romance, em falar desse período traumático com outras personagens. Como Hentea sublinha, “the deep trauma Charley feels will not start with a confession — it will be by bits and pieces and false starts” (). É curioso, ainda assim, notar as associações que Charley faz entre os animais e as suas memórias reprimidas: as vespas, velozes e agressivas, representando as máquinas de guerra na sua inumanidade plena; o macaco, animal que não só simboliza a proximidade do ser humano com o reino animal, como também a sua evolução física e cognitiva, aqui enjaulado e removido do seu estado natural; e, por fim, o rato, que na sua captura configura a posse e o controlo a que Charley tão desesperadamente aspira. A esta matriosca animalesca podemos adicionar o gato de Nancy, o qual é intimamente associado a ela e a outras mulheres, em contraste com a descrição de homens como cães, especialmente de Charley, cujo olhar e comportamentos são “like a dog’s” (). Note-se, também, que o gato de Nancy se chama Panzer—diminutivo de Panzerkampfwagen, ou seja, o equivalente a um tanque em alemão. Nancy afirma que a sua gata “doesn’t go out after nasty toms” ()—“tom” significando gato, mas também podendo aludir ao nome dado aos soldados britânicos no campo de batalha: Tommy. Podemos, portanto, entender as associações que Charley faz entre as mulheres e as suas experiências de guerra.

Quando o Sr. Grant morre e Charley, da sala, ouve gritos de terror por parte de Nancy e da Sra. Grant, ele tenta abstrair-se:

(…) [A]ll this was about to remind Summers of something in France which he knew, as he valued his reason, that he must always shut out. He clapped hands down tight over his ears. He concentrated on not ever remembering. On keeping himself dead empty. ()

Ao contrário do que acontecera da primeira vez que vira a gata (“He knew no cat. It meant nothing.” []), desta vez, ao ver a gata a dormir, Charley recorda-se dos tanques: “he nearly let the horror get him, for the feelings he must never have again were summoned once more when he realized the cat, they came rumbling back, as though at a signal, from a moment at night in France” (). Em última instância, Charley é capaz de reprimir a memória: “He mastered it. And, when he took his streaming hands away, everything was dead quiet” (). Tal como conseguira manter o rato preso no campo de prisioneiros, Charley é capaz de enclausurar as suas memórias dentro de um escudo protetor que o abriga de estímulos externos (cf. ). O volume e intensidade das memórias diminuem até se resumirem a um simples zumbido ocasional no meio do silêncio.

Não podemos deixar de sublinhar, no entanto, que o silêncio é um dos principais problemas de Charley. Ele admite a James: “I couldn’t drop off when I first got back. It was the quiet” (). Por outras palavras, o silêncio e a falta de comunicação deixam Charley ansioso, tornando-o dependente da sua obsessão por Rose para se conectar ao presente. Infelizmente, Charley é incapaz de seguir o conselho de James, “inwardly digest” (), e escapar às repetições que o assombram. Por isso é que ele expressa reiteradamente o seu arrependimento perante Nancy, incapaz de lhe explicar o motivo da sua culpa: “He was apologising. He always would” (). Charley sabe que o seu processo será lento, doloroso, frustrante; será apenas através da passagem do tempo que ele conseguirá recuperar as suas noites de sono profundo.

5. Da cura da memória: o inconsciente e o perdão

Quando Charley finalmente aceita que Nancy não é Rose, recebendo da Sra. Grant “the final confirmation that Rose was truly dead, that Nance [sic] was a real person” (), o leitor assume que ele se encontra no caminho da recuperação. Contudo, após ver Nancy nua na cama, esperando-o, ele quebra novamente:

(…) [I]t was too much, for he burst into tears again, he buried his face in her side just below the ribs, and bawled like a child. “Rose,” he called out, not knowing he did so, “Rose.” ()

São várias as interpretações desta cena final, desde as leituras esperançosas de Hentea () e Miller () de que Charley finalmente se consegue libertar de Rose através do seu amor por Nancy, até ao ceticismo de Shapiro (), que considera a recuperação de Charley como sendo apenas parcial. Porém, é o lapso verbal, a palavra “Rose” escapando dos lábios de Charley inconscientemente, que causa uma certa perplexidade, deixando em aberto a questão: estará Charley realmente curado?

Para respondermos a esta questão, teremos de considerar o trauma de Charley como sendo, em larga medida, ignorado ao longo do romance. Mesmo quando Charley deixa de sentir dor ao ouvir a palavra “rose”, decidindo resolutamente “Rose was gone” (), ele continua a ser invadido pelo passado. Ao ver o filho de Rose, Charley percebe: “nothing, nothing was brought back” (). Nada é trazido de volta, tudo fica no passado sem hipótese de ser recuperado; mas o nada também volta ao presente e paralisa a ação. Quando a teia de associações é mais uma vez rompida desde o cerne da memória, o que resta é um vazio, o vazio deixado por “Rose”, o símbolo do amor e da união, mas também da efemeridade da vida.

Aqui chegamos ao último duplo: Rose enquanto anima junguiana de Charley. Apesar de o presente ensaio não se apoiar fundamentalmente em interpretações alvitradas pela psicologia analítica, é inegável que Charley apresenta traços psicológicos estereotipicamente associados ao sexo feminino. Ele é tímido, submisso, servil—todas as características opostas ao homem de ação que singra nos tempos de guerra. Ele próprio admite ser incapaz de casar e constituir família, repetindo incessantemente que é demasiado lento para conseguir atrair uma mulher.

Tendo isto em mente, Shapiro argumenta que Nancy e Rose representam “the accepting and rejecting aspects of a ‘split’ mother” (). Contudo, também representam diferentes aspetos femininos do “eu”, os quais são essenciais no processo de individuação de Charley. Jung argumenta que a anima surge “como mediadora entre o ego e o self”, ligando o consciente e o inconsciente—enquanto Rose a representa nos seus primeiros estágios, lembrando o amor estético e sexual, Nancy “eleva o amor (eros) à grandeza da devoção Espiritual” (). Aqui também podemos retomar o complexo Madonna-prostituta, em que a mulher é representada nestes moldes polarizantes—talvez, daí, a recaída de Charley quando vê Nancy sexualmente disponível, relembrando-o de Rose. Ora, a identificação de Charley com este aspeto exterior da sua anima torna-o “compulsivamente dependente de uma mulher real” (), o que o inibe de cultivar a sua identidade.

Deste modo, ao chamar por Rose inconscientemente Charley associa-a à sua incompletude, um sinal de que deverá viver para sempre fragmentado, desmembrado fisicamente e psicologicamente. No entanto, retomando a história de Septimanie, é a fusão de ambas Rose e Nancy, do desejo e do amor, que irá restaurar o inconsciente de Charley e complementar o seu ego. Como Hentea remarca sobre a memória do rato que Charley mantivera no campo de prisioneiros, “Nancy is the character who brought out this admission, and she is the only one who tries to get Charley to elucidate his wartime experiences” (). Nancy integra, desta forma, a sua missão de “levar o homem ao seu inconsciente, forçando-o assim a reminiscências mais profundas e a uma aguda conscientização” (). Poderemos acrescentar que a continuidade entre Rose e Nancy permite a Charlie (re)formular a narrativa das suas memórias. Aqui retomamos o conceito de “fictions of memory”, proposto por Birgit Neumann, para elucidar um aspeto importante no que concerne obras de ficção:

(…) [M]ore often than not, they turn out to be an imaginative (re)construction of the past in response to current needs. (…) In accordance with recent approaches to memory, such novels intimate that meaningful memories do not exist prior to the process of remembering and narrating the past, but that they are constituted by the active creation of self-narrations. ()

Em suma, a memória não pode deixar lacunas ou rasuras, todas as teias devem ser remendadas e unificadas, mesmo se pertencendo a tempos incompatíveis. As cartas que surgem ao longo da obra—forjadas, cortadas, reescritas—são exemplo de como a história tem de ser contada, por mais que não corresponda a uma realidade objetiva. De facto, o impacto do trauma nas memórias não pressupõe apenas a busca de uma cura individual, mas de um entendimento da nossa experiência histórica numa era dominada pela “crise da verdade” ():

To listen to the crisis of a trauma, that is, is not only to listen for the event, but to hear in the testimony the survivors’ departure from it; the challenge of the therapeutic listener, in other words, is how to listen to departure. ()

Se é verdade que “[t]o be traumatized is precisely to be possessed by an image or event” (, ), então não existe cura para o caso de Charley: a sua doença é a memória, o passado que não pode ser esquecido, ainda que nas suas incertezas e fabricações. Porém, quando Nancy o conforta ao invés de o confrontar, ela aprende a interpretar a mente de Charlie, “listening and recognizing the truth of memories that would, under traditional criteria, be considered to be false” (). Neste sentido, a “partida” de Charlie da realidade é reconhecida por Nancy, que o mantém ancorado no seu colo: “she knew what she had taken on. It was no more or less, really, than she had expected” (). Como relembra Paul Ricoeur:

Forgiveness is a way of healing memory and of completing its period of mourning. Delivered from the weight of guilt, memory is liberated for great projects. Forgiveness gives memory a future. ()

Receber o perdão e entendimento de Nancy não é uma cura absoluta, mas pauta o início da recuperação de Charlie, uma vez que solidifica o laço entre ambos. Ao fim e ao cabo, a memória tradicional assume uma função fundamentalmente social, enquanto a memória traumática implica uma experiência solitária (). Apenas o que é socialmente palatável pode ser partilhado, pois a incompreensão da sociedade pode levar ao isolamento e à desconexão com a realidade. Para evitar que o mesmo acontecesse com a sua mulher, o Sr. Grant recusara-se a deixá-la esquecer Rose, ignorando as recomendações do médico:

“I thought maybe it wasn’t the best thing for Amy to forget Rose. (…) I knew a man once, in the ordinary run of business, who started to misremember in that fashion. Wasn’t long before he’d lost all his connections. Even came to it they had to shut him away [sic]. Because when all’s said and done you can’t go on like it, can you? So I tried talking to Amy about Rose.” ()

O que o Sr. Grant ignora é que este processo de rememoração deve ser gradual e lento, atendendo a um simples facto: “[t]raumatic memories are the unassimilated scraps of overwhelming experiences, which need to be integrated with existing mental schemes, and be transformed into narrative language” (). Numa conversa, a Sra. Grant apercebe-se de que Charley não gosta de falar sobre Rose e admite: “You know for a long time after that happened I couldn’t bear it, I had to put the whole thing behind me or lose my reason” (). Isto significa que o abrupto recordar destas memórias, sem mecanismos apropriados de processamento e afastamento emocional, leva à perda da razão. Já Nietzsche afirmara: “Esquecer não é uma simples vis inertiae (força inercial), como creem os superficiais, mas uma força inibidora, ativa, positiva no mais rigoroso sentido” (). Deste modo, é necessário “[f]echar temporariamente as portas e as janelas da consciência” para obter “um pouco de sossego, um pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo” (). Por este motivo, Charley associa o esquecimento à felicidade, como ele próprio assume ao não se recordar da tarde em que ficara noivo de Nancy, considerando: “It was bliss” (). Seguindo esta linha de pensamento, Victoria Stewart sugere o seguinte:

Charley’s strategy for keeping his pain at bay is deliberate, rather than involuntary, forgetting, and in the light of this, his behaviour throughout the novel is explicable; the narrative is a series of attempts to either master involuntary associations, or deliberately reconstruct an albeit counterfactual version of events. ()

A assimilação de uma nova realidade faz parte do processo de cicatrização de Charley que, apesar de não poder recuperar a sua perna ou os anos perdidos, ainda se consegue movimentar e viver graças ao esquecimento ativo. É um facto que as memórias devem ser, inevitavelmente, recuperadas; contudo, como Green acautela (cf. ), é importante não nos aproximarmos demasiado delas, mas mantermos a distância necessária para ouvirmos os seus rumores distantes e nos deixarmos guiar pelos seus ecos.