“It costs me less in every sense to incur the penalty of disobedience to the State than it would to obey. I should feel as if I were worth less in that case.”

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“Seja como for, incorrer no castigo, por desobedecer ao Estado, custa menos do que obedecer-lhe. Obedecer é como confessar que nada valho.”

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Introdução

Num tempo de muitas corrupções e conformismos generalizados, surge um realizador, Rodrigo Areias, capaz de projectar no grande ecrã o desencanto do sentimento colectivo de nada se poder mudar num país em que a lei do mais forte impera. Neste cenário, o apelo ético e político do conceito de Desobediência Civil de Henry David Thoreau impõe-se mais do que nunca justificando, assim, totalmente a produção de um filme como Estrada de Palha ().

Nesta obra alude-se de forma explícita aos trajectos que os pastores transumantes percorriam em Portugal com os seus rebanhos. “Estrada de Palha” seria o nome dado à parte mais perigosa do percurso. Esta narrativa cinematográfica aborda a história de um homem que, após ter vivido longe do seu país durante mais de uma década, volta à sua aldeia para vingar a morte do irmão. Inspirado na convocação à resistência civil dos escritos de Henry David Thoreau, Alberto Carneiro, a personagem central, traduz Civil Disobedience (1849) para português. Ao longo desta obra repete-se a ideia recorrente de que a acção se passa num país onde nada muda. Onde a corrupção e a exploração dos mais fracos são encaradas com normalidade, os representantes do Estado prendem e matam impunemente, o que leva Alberto a tentar combater esta tirania salvando o que resta da sua dignidade e da sua família.

Rodado entre a serra da Estrela e o Alto Alentejo, além de conter uma série de planos feitos na Lapónia, Estrada de Palha desenvolve-se “respeitando o trajecto da transumância do gado serrano, um dos principais motores económicos da Península Ibérica durante mais de cinco séculos”, explicou o realizador, quando o filme passou no festival de Vila do Conde. É de salientar que esta obra cinematográfica foi bastante bem recebida pela crítica nacional tendo igualmente obtido grande projecção internacional, nomeadamente na Finlândia, onde Estrada de Palha passou no Midnight Sun Film Festival (e recebeu elogios de Aki Kaurismäki), participando também no festival checo de Karlovy Vary, onde fez parte da competição. Daí que Rodrigo Areias tenha observado: “As pessoas ainda não se aperceberam da responsabilidade que o cinema português hoje tem na divulgação da nossa cultura e da nossa imagem a nível internacional.”

Defendendo a ética de resistência civil de Henri David Thoreau (1817–1872) e citando recorrentemente excertos traduzidos de Civil Disobedience (1849), este filme de Areias desenvolve uma via estética de consciencialização política da realidade nacional actual, sem se tornar num filme de vincada ideologia programática. Baseado na actualidade portuguesa, procura perspectivá-la através de um ponto de vista reflexivo e filosófico alicerçado nos pensamentos libertários de Thoreau, que alertavam para o divórcio entre a política e os direitos do cidadão, argumentando que os indivíduos tinham o direito e o dever de se recusarem a ser instrumentos da injustiça governamental:

The mass of men serve the state thus, not as men mainly, but as machines, with their bodies. (…) But when the friction comes to have its machine, and oppression and robbery are organized, I say, let us not have such a machine any longer. (Thoreau 112–113)

Estrada de Palha – Um Western Português Alentejano

Sendo um western muito peculiar, uma das características mais interessantes deste filme é que Rodrigo Areias conseguiu nele contrastar a violência com o bucolismo, a desobediência com a passividade, o conflito com a paz, conciliando o inconciliável e criando fortes equivalentes imagéticos do conceito ético de resistência passiva de Thoreau. Adequado à representação de um ambiente político-social instável, o western será, sem dúvida, um dos géneros que melhor representa sistemas sociais em crise onde actos de resistência passiva mais serão colocados à prova pelo seu directo confronto com abusos de poder e com legitimações constantes de actos de usurpação e corrupção, razões pelas quais este género terá muito provavelmente sido escolhido por Rodrigo Areias.

Concebido como um western alentejano, ou um “western rojão”, segundo o seu realizador, que assume as suas raízes minhotas, este filme teria necessariamente de evocar o imaginário do western americano e os seus códigos distintivos, procedendo à sua desconstrução numa identidade portuguesa. Recorrendo a este processo, estabelece um variado número de alusões ao género, sem com isso desejar parodiá-lo. O uso da acção, a iminente presença da violência e o percurso para atingir uma ética de conduta para os que afrontam a lei associam-se a um ambiente político-social instável, onde, à semelhança do que sucede no western americano, impera a lei do mais forte, e, por consequência a legitimação da usurpação e corrupção. Contudo, a intenção se afirmar como uma produção nacional mantém-se, tendo Rodrigo Areias esclarecido:

A minha intenção era que o filme tivesse uma construção de género e uma desconstrução portuguesa. Era esse o ponto de partida. Não queria fazer forçosamente um filme histórico. Todos os anti-clímaxes que se vão construindo partem de estereótipos do western. Vai haver um duelo? OK, não vai ser nem à americana nem à inglesa, mas uma mistura dos dois. Começa com a história da morte do irmão? Tu não sabes verdadeiramente se ele encontra os assassinos do seu irmão ou não, não fica explícito… A minha ideia era sempre partir desse cliché do western, para depois o desmontar e tornar numa coisa mais portuguesa. E não apenas portuguesa, pois há muito universo de BD a entrar de repente por aquelas personagens. O Lucky Luke ou o Blueberry fazem parte da nossa geração, há um lado muito europeu de revisitar essa realidade americana. Para mim, era sempre mais interessante ser uma coisa assumidamente portuguesa, em vez de filmar uma coisa em Itália ou no sul de Espanha a fingir que era a América.

Como Western português, Estrada de Palha procura a justificação dos seus pressupostos estético-éticos orientando-se por pensamentos de Thoreau e também por certas considerações de , segundo as quais se defende:

Onde a moral individual é precária, só a lei pode impor a ordem do bem e o bem da ordem. Mas a lei é tanto mais injusta quanto pretende garantir uma moral social ignorante dos méritos individuais dos que constituem a sociedade. (238)

Convém sublinhar que esta obra cinematográfica não se detém na defesa inútil de falsas demagogias e ideais anarquistas, mas antes se preocupa com a necessidade de uma moral, identificada por Bazin, como uma das características-chave do western.

Encontramos, assim, notórias influências dos filmes de John Ford, o grande mestre do género, que sempre demonstrou grande preocupação com o valor da integridade humana. Como na obra de Ford, também nesta realização de Rodrigo Areias encontramos os grandes temas do bem e do mal, que se confrontam perante uma ética da visão do realizador, bem expressa em imagens organizadas com um equivalente sentido estético que a presença da luz amplifica. Aliás, em entrevistas dadas pelo realizador americano, este sempre destacou a importância da fotografia, que considerava essencial para um bom filme, pois via o cinema como um meio em que todo o potencial dramático se impõe através da sua comunicação plástica, a que subjaz uma visão não-dogmática da realidade e do comportamento humano. Numa entrevista aos Cahiers du Cinéma, John Ford chegou a revelar esta sua preocupação: “Não penso ter conscientemente vestido os meus heróis de branco e os meus maus de negro. A virtude não triunfa sempre, nem na vida nem no western. Algumas vezes triunfa e, cá no fundo, acho isso bem” (120).

Para realizar Estrada de Palha, Rodrigo Areias desenvolveu um grande trabalho de pesquisa que o obrigou a revisitar toda a obra de John Ford, mas também os western spaghetti de Sergio Leone, o Homem Morto () de Jim Jarmusch, o El Topo () de Alejandro Jodorowsky. O seu objectivo ficou totalmente esclarecido para o público, quando referiu que desejava manter o filme como uma construção de género, mas simultaneamente proceder a uma desconstrução portuguesa. Trata-se, então, de um ensaio sobre o western e o seu grande alcance filosófico e existencial, revelando a sua eficácia estética contemporânea. Apresentado num contexto geográfico e social muito afastado dos pressupostos deste género, Estrada de Palha adquire uma originalidade particularmente inesperada e em diálogo directo com Alentejo sem Lei de João Canijo, uma mini-série de televisão portuguesa, de apenas três episódios, passada no Alentejo durante a guerra civil de 1828–1834, na qual miguelistas lutavam contra os liberais, numa região em que também a força era a lei.

Estrada de Palha possui uma forte mensagem política bem explícita e actual nos dias de hoje, ao conferir urgência, em tempos conturbados como os nossos, ao convívio com os pensamentos éticos e libertários de Thoreau, o grande defensor de práticas pacifistas através do método de resistência passiva. Um cowboy justiceiro e intelectual, tão hábil com rebanhos como com a natureza humana, surge persistentemente acompanhado por um texto que anda a traduzir de um livro eloquente e profético: Desobediência Civil (1849) de Henry David Thoreau. Ao longo do filme, surgem vários fragmentos deste seu texto, defendendo-se a desobediência civil individual como forma de oposição ao estado/governo/poder. Lembrando técnicas de cinema mudo, os pensamentos de Thoreau surgem intercalados nas várias cenas do filme, não as traduzindo directamente, mas acrescentando-lhes comentários reflexivos e filosóficos. A sua eloquência torna-se tanto mais expressiva quanto maior é o contraste da ética que transmitem com a realidade da acção determinada pelo confronto com a prepotência e arrogância do poder, dramatizadas por um déspota capitão Bacelo (Nuno Melo), que impõe a sua autoridade sem qualquer tipo de regras e apenas beneficiando os seus interesses pessoais. Estrada de Palha ultrapassa, assim, a sua mera condição de filme de género para se tornar numa especulação filosófica sobre o sentimento trágico do destino humano e a sua fragilidade perante sistemas ditatoriais, além de ser quase um tratado existencial sobre muitos aspectos da errância e até do nomadismo. Capaz de se confrontar com os cenários mais agrestes e desolados da Lapónia, representados no filme por grandes e sublimes planos gélidos filmados na Noruega, o protagonista, justiceiro e resistente, desenvolve uma longa e romântica demanda solitária, semelhante ao trajecto dos pastores que viajam para sul pela Estrada de Palha, enfrentando todos os perigos. Após este duro ritual de passagem por experiências difíceis em locais solitários, que lhe permitiram a meditação e sagacidade de um eremita ou monge budista, Alberto Carneiro, está pronto para se confrontar mais eficazmente contra a brutalidade e a injustiça do poder.

Paralelismos e Afinidades entre H. D. Thoreau e Alberto Carneiro

Para melhor comprovar a actualidade dos pensamentos de Thoreau e justificar a sua aplicação prática, existem no filme alguns paralelismos entre os seus motivos político-filosóficos e os de Alberto Carneiro, a personagem central deste filme de Rodrigo Areias, para quem o pensador americano representa o melhor líder intelectual com quem estabelece várias afinidades. Se Thoreau era crítico relativamente ao pagamento de impostos na América do seu tempo, sendo um abolicionista preocupado com a dignidade do indivíduo acima de tudo, Alberto, o protagonista, é também preso por não querer ser roubado pelo Estado. No filme, Alberto torna-se inimigo do capitão Bacelo devido a uma portagem exigida por este que o pastor se recusa a pagar. Tanto Thoreau como Alberto são incondescendentes relativamente a ilegalidades praticadas por um Estado que assim demonstra não estar a exercer a sua função correctamente.

Caminhantes solitários e libertários, ambos vivem sozinhos em comunhão com a Natureza e defendem a sua integridade individual, confrontando a corrupção do Estado e promovendo atitudes de resistência passiva, não apelando, por isso, ao duelo físico com a autoridade. As sublimes imagens iniciais do filme, que apresentam Alberto como eremita, vivendo em profundo isolamento nas montanhas gélidas da Lapónia, poderiam facilmente corresponder à situação de extrema solidão vivida por Thoreau na sua cabana junto do lago Walden, em Concord, onde procurava essa “sweet solitude my spitit seemed so early to require” (Bode 5) e que o convidava aos mais nobres pensamentos, que deixou registados em Walden; or Life in the Woods (1854). Embora alguns dos seus biógrafos tenham preferido apresentá-lo como alguém mais equilibrado, tendo sublinhado a sua natureza social, a verdade é que Thoreau era, na sua essência, um homem sozinho, um loner. Convém lembrar que, no filme de Areias, Alberto, enquanto pastor itinerante, deambula por locais inabitados e inóspitos, acabando por desaparecer, calmamente, como faz durante todo o filme, para se isolar e dedicar-se a uma vida de reflexão, algo profundamente romântico e até evocativo da obra Os Devaneios de um Caminhante Solitário (1782) de Jean Jacques Rosseau.

Perseguindo igualmente os seus profundos desejos de vida privada, também Thoreau sempre tentou evitar qualquer invasão da sua privacidade, que a todo o custo precisava de manter para caminhar, pensar e escrever. Só assim conseguiu desenvolver o grande poder de reflexão expresso nos seus textos, tendo num dos diários confessado: “tonight my flute awakes the echoes over this very water … Even I have at length helped to cloth that fabulous landscape of my imagination” (Ibid.). Uma fabulosa paisagem da imaginação será também algo que se mantém comum a este pensador americano e a Alberto Carneiro, pois ambos possuem uma sensibilidade poética que os une numa relação transcendental com a Natureza, esse enorme símbolo do espírito humano segundo , o grande orientador filosófico e espiritual do Transcendentalismo Americano e grande mestre de Thoreau.

A Natureza seria, então, o local ideal para fazer surgir o melhor do indivíduo, possibilitando-lhe atingir e aperfeiçoar a sua identidade e voz poética. Solidão e privacidade seriam, assim, os ingredientes essenciais ao desenvolvimento e evolução de um poeta que respeitasse a sua independência de espírito e o valor da introspecção e intuição humanas. E, embora o poeta estivesse isolado dos seus contemporâneos, como bem observou Emerson no seu ensaio, The Poet, ele seria representativo do homem completo e dele se exigia que celebrasse valores universais conducentes à liberdade individual, pois além de se acreditar poderem os poetas ser deuses libertadores (“the poets are thus liberating gods”), também se defendia que a expressão poética conferia poderes muito especiais: “the use of symbols has a certain power of emancipation and exhilaration for all men” (Emerson 276). Não existe, assim, qualquer dúvida que Thoreau desejava ser poeta, não significando que tencionava tornar-se um esteta lânguido e sentimental, mas antes um representante de uma humanidade moderna, situando-se próximo do visionário e do profeta. De acordo com a sua concepção, o poeta ideal seria mais nobre do que o cientista e superior ao filósofo partilhando características de ambos:

The collector of facts must possess a perfect physical organization; the philosopher, a perfect intelectual organization. But in the true poet they are so fairly but mysteriously balanced, that we can see the results of both, and generalize even the widest deductions of philosophy. (Thoreau 20)

Assim, todos os pensamentos e reflexões apresentados em Civil Disobedience não estão desprovidos de sentido poético, o que confere às causas aí defendidas um maior impacto no alcance das mensagens éticas e políticas transmitidas. Rodrigo Areias soube transpor magistralmente para o seu filme esta ética poética de Thoreau que foi profundamente integrada na personalidade de Alberto Carneiro, nome aliás ressonante de uma herança pessoana que nos interpela pelo jogo irónico associativo que estabelece com o heterónimo Alberto Caeiro, esse guardador de rebanhos que, na verdade, guardava pensamentos, fixando em poesia a realidade mais pura e autêntica da Natureza. O conhecido desejo de total simplicidade existencial próprio deste heterónimo, para quem a sensação seria a única realidade com a qual se relacionava da forma mais objectiva e natural possível, identifica-se com a preferência de Alberto Carneiro e do próprio Thoreau em viver uma vida simples. A famosa cabana deste último em Walden era, por exemplo, constituída apenas por um quarto sem fechadura na porta nem cortina na janela, o que para si seria o suficiente, já que era seu desejo seguir as orientações de Thomas Carlyle, que aconselhavam a reduzir as necessidades ao essencial: “reduce your wants and live a simple life” (Bode 21). Daí que os textos produzidos pelos transcendentalistas americanos produzissem, no seu conjunto, uma imagem estereotipada de um movimento que acreditava numa América pastoral e idílica, mas que não deixava de transportar uma profunda crítica social aos efeitos negativos da industrialização, como bem nos lembra Perry Miller em :

The picture of the movement as a charming idyll in a pastoral America became, by the end of the century, the stereotype. It has been perpetuated to our own day by writers whose dread of an industrialized and mechanized civilization bred a nostalgia for simplicity and rural quietude. (Miller 14)

Não será demais lembrar que esta atitude ascética de Thoreau demarcava-se totalmente das tendências socioculturais dominantes na época, determinadas pelo materialismo americano, que já incentivava o consumo e a acumulação de propriedade privada, a que o filme de Areias também alude, colocando o centro da intriga cinematográfica na apropriação ilegal de rebanhos de ovelhas. Além disso, a imagem do rebanho tem sido frequentemente utilizada por este realizador português, inclusive em anúncios televisivos de sua autoria, o que revela um profundo interesse pelo alcance crítico e humorístico desta metáfora imagética que se adequa de forma particularmente pertinente à realidade socio-política nacional determinada por um conformismo ancestral imutável. Sabe-se como igualmente o próprio Thoreau se insurgiu sempre contra este estado de coisas, pois desde cedo se apercebeu que, no seu tempo, as pessoas em Concord e noutros locais do mundo viviam escravizadas não só pela fome, mas também pelo apego à propriedade privada e à conformidade social. Indignado pelo facto de grande parte dos homens levarem uma vida de desespero silencioso sem nada fazerem contra isso, este autor americano chegou um dia a denunciar esta extrema passividade, dirigindo-se até aos próprios abolicionistas, dizendo-lhes: “Ye are all slaves” (Bode 25).

Defendendo acima de tudo a dignidade e liberdade individuais e criticando a prepotência de todo o autoritarismo corrupto, Estrada de Palha de Rodrigo Areias encontrou decerto, nas ideias centrais do pensamento de Thoreau, os melhores argumentos para justificar a defesa de uma causa comum apresentada em obras produzidas em diferentes épocas. Por isso a personalidade de Alberto Carneiro se aproxima tanto de Thoreau e das suas causas. Partindo de referências éticas exemplares do pensador americano, as acções de Alberto podem também tornar-se num exemplo de conduta para a cena social e política nacional, onde cada indivíduo deveria exercer o seu poder de julgar por si próprio, única forma de garantir a independência. Se Alberto age sozinho e de acordo com os seus próprios princípios, tudo acaba por se resumir, como em Civil Disobedience, a uma questão de consciência e não de mero desejo de poder ou de acumulação de benefícios, possuídos pela autoridade, a que se resiste passivamente denunciando os seus excessos criminosos e malévolos. Na ausência deste sentido ético, parece estar a razão de todos os males passados, presentes e futuros, podendo isto minar qualquer sistema social e político que facilmente se desorienta pela perda dos seus mais essenciais valores, como bem Thoreau previra nas suas reflexões sobre desobediência civil: “Others – as most legislators, politicians, lawyers, ministers, and office-holders – serve the state chiefly with their heads; and, as they rarely make any moral distinctions, they are as likely to serve the devil, without intending it, as God” (Thoreau 112). É, assim, natural que estes pensamentos tornem solitários quem os produz, pois será sempre alguém que se recusa a ser moldável pelo poder: “a wise man will only be useful as a man, and will not submit to be ‘clay’” (Ibid. 133). Um homem sábio será também alguém que se recusa a ser mais uma peça na engrenagem de uma máquina reprodutora de actos corruptos que parecem imparáveis e repetíveis no tempo, a não ser que indivíduos de consciência independente e libertária lhes resistam com a determinação de um Gandhi, como parece ser a intenção de Alberto Carneiro em Estrada de Palha. Mais uma vez as palavras de Thoreau, em Civil Disobedience, são a este respeito premonitórias: “There will never be a really free and enlightened State until the State comes to recognize the individual as a higher and independent power, from which all its own power and authority are derived and treats him accordingly” (Ibid. 113).

Entende-se, assim, que a intervenção revolucionária de confronto com o poder tirano e corrupto do estado, por parte da personagem Alberto Carneiro, encontre fundamentação teórica, ética e política em vários pensamentos de Thoreau extraídos do seu ensaio sobre desobediência civil. A apropriação dos escritos deste pensador do séc. XIX, por um realizador do séc. XXI, para criar o seu filme, projecta nessa identificação da personagem central um mecanismo de autorreferencialidade, pois Areias e Alberto possuem o mesmo fascínio pela filosofia de Thoreau e pelo apelo à não violência do seu método pacifista de resistência passiva. Assim se justifica a grande modernidade e actualidade da visão crítica deste autor americano, cuja imaginação subversiva sempre fez parte da geração de transcendentalistas americanos a que pertencia, e que David Reynolds bem identifica na sua obra , onde se destaca a relevância da rebelião destes escritores contra o poder cultural dominante: “The view of the major writers as alienated rebels has become deeply ingrained in our view of American literature. It has become common to view high literature as an isolated act of rebellion or subversion against a dominant culture” (6). Ao traduzir Civil Disobedience para português, Alberto Carneiro traduz este espírito de rebelião necessário à urgente mudança de mentalidades ainda hoje sentida no cenário sócio-político nacional comprovando, assim, que o seu conhecimento, adquirido em profundo isolamento asceta, lhe proporcionou uma grande consciência das reais condições históricas e sociais do seu país, como aliás também aconteceu com a experiência eremita de Thoreau em Walden.

Conclusões Finais

Estimulando uma discussão política, mas não panfletária, a utilização cinematográfica do célebre texto, Desobediência Civil de Thoreau, confere rigor ao alcance da mensagem ideológica que transmite e que se projecta em Estrada de Palha. As citações do pensador americano, entre algumas sequências, fazem com que a palavra atinja uma dimensão ética e universal, tão forte como o poder das imagens que indirectamente comentam: “Percebi que o Estado era deficiente mental. Como uma viúva agarrada às suas pratas, incapaz de distinguir amigos e inimigos. Foi então que lhe perdi o pouco respeito que tinha e passei a ter pena dele”. Esta resistência desobediente torna-se, então, uma forma de contrariar a desistência fomentando uma activa participação na mudança.

De realçar a surpreendente actualidade deste filme, que, ao inspirar-se em Thoreau, comprova serem os seus pensamentos profundamente actuais. O seu famoso aforismo, “o melhor governo é aquele que menos governa” (“that government is best which governs least”) (Thoreau 109), aplica-se a esta narrativa cinematográfica localizada num país onde a prepotência da autoridade é encarada com normalidade, permitindo-se que os representantes do Estado prendam e matem impunemente. Ao tentar combater-se esta tirania, cai-se no desânimo de concluir ser este um país onde nada muda…

A capacidade do conteúdo temático de Estrada de Palha de se projectar no espaço contemporâneo é, assim, enorme, tornando possível uma interessante e original identificação entre ficção e realidade actual. Esta obra cinematográfica dialoga profundamente com a nossa contemporaneidade por representar um exercício imaginário que possibilita uma importante reflexão sobre a disseminação e normalização de práticas legais para exercer permanentes ilegalidades que se estendem a todo o território nacional tal como acontece na actualidade. Tanto na narrativa fílmica, como na vida do cidadão comum actual, abundam situações de excessos fiscais, taxas, impostos, que o realizador, enquanto membro do rebanho, pressente como definitivos, confessando a sua apreensão relativamente ao cenário da sociedade portuguesa:

De repente a democracia são sempre os outros, a culpa é sempre de outra pessoa que votou naqueles tipos. O lado amorfo com que a malta vê isto assusta-me muito. E do meu ponto de vista é óbvio que isto nunca vai mudar.

Contudo, Alberto Carneiro, o cowboy resiliente e rebelde, não se separa de Desobediência Civil, que transporta como um texto sagrado que interiorizou nos seus pensamentos e acções com a esperança de conseguir um “governo melhor”. Estrada de Palha apela, assim, ao poder de identificação do espectador com um fora-da-lei possuidor de mais princípios e valores dos que estão dentro da lei, aproximando-o de uma personagem desobediente através da qual poderá reencontrar a sua identidade e liberdade, tanto individual como colectiva. Como bem observou o realizador, durante o visionamento deste filme será impossível não pensar numa relação com um país onde é comum haver cinquenta por cento de abstenção em actos eleitorais. Assim se justifica que exista no filme alguém que se interroga sobre “que sentido faz viver aqui se isto nunca vai mudar”, tornando-se algo cada vez mais pertinente no momento actual. Consequentemente, o uso da câmara de filmar intervém numa reflexão ética sobre o presente português e a consequente descrença num futuro mais promissor. Se, através deste filme, o seu realizador nos transmite o realismo da mensagem pessimista, que persiste em afirmar que o contexto político-social “nunca vai mudar”, o público sentir-se-á interpelado acerca da existência de uma possível saída para um estado de inércia e desesperança em relação à crescente descrença geral na democracia já partilhada por Thoreau em Civil Disobedience:

when the power is once in the hands of the people, a majority are permitted, and for a long period continue, to rule is not because they are most likely to be in the right, nor because this seems fairest to the minority, but because they are most likely to be in the right, nor because this seems fairest to the minority, but because they are physically the strongest. But a government in which the majority rule in all cases cannot be based on justice, even as far as men understand it. (Thoreau 111)

Neste sentido, Estrada de Palha apresenta uma matriz cinematográfica que nos pode orientar num muito salutar debate sobre atitudes e formas de resistência que levem a combater o medo e o conformismo, grandes responsáveis pelos hábitos e costumes de rebanho obediente em que vivemos, e que os pensamentos de Thoreau tinham já antecipado, em sintonia, aliás, com os de alguns autores mais centrais do transcendentalismo americano, como bem observou Perry Miller: “(…) this literature be read as fundamentally an expression of a religious radicalism in revolt against a rational conservatism (…) becomes (…) a protest of the human spirit against emotional starvation” (8). Tudo isto nos permitirá concluir que esta obra cinematográfica de Rodrigo Areias, ao dialogar com um dos maiores representantes da Renascença Americana, fará eco deste protesto contra o conservadorismo racional, combatendo os perigos de uma aridez emocional generalizada. Imbuído deste espírito de rebelião e acompanhado da melhor filosofia política de Thoreau, este realizador português conseguiu provar que filmar pode transformar-se numa proposta artística de desobediência. Filmar é, também, desobedecer.