1. Introdução

Este artigo apresenta uma articulação entre os Estudos de Cultura e os Estudos de Tendências, para a análise cultural da empresa americana do ramo da tecnologia espacial SpaceX. Este estudo de caso faz uso do Circuito da Cultura, proposto por Paul du Gay, Stuart Hall e colegas (), como protocolo metodológico para a análise de manifestações de tendências e consequente identificação de mentalidades relacionadas. Esta é uma das etapas para se identificar tendências socioculturais do âmbito da tecnologia em conformidade com o estudo desenvolvido por Cohen ().

Os Estudos de Tendências, abordagem que articula-se com os Estudos de Cultura (; ; ) e que pauta-se na análise de dinâmicas socioculturais, tem se sedimentado e ampliado na academia, com emergência na publicação de livros e artigos, além de teses de doutoramento e dissertações de mestrado sobre a temática.

Apesar de o termo tendência poder ser considerado um “travelling concept” (Neumann e Nünning 2012; ; ), por permear diferentes meios e comunidades (), é hoje bem definido no âmbito dos Estudos de Tendências. Nelson Gomes, Suzana Cohen e Ana Marta Flores (), assim como Gomes et al (), fizeram uma compilação de diferentes autores e apresentaram uma organização dessas definições para a compreensão do termo. Desta forma, as tendências podem ser entendidas como direções e mudanças socioculturais, que se intensificam com o passar do tempo (ver também Dragt 2017; ; ; ; ; ; ) e que podem ser identificadas a partir do mapeamento de padrões socioculturais (; ) – que manifestam-se em objetos, comportamentos e rituais. Essa identificação é um elemento-chave que levará à compreensão de um cenário maior relacionado com mentalidades que permeiam a esfera “invisível” da cultura (E. ; ; ; ).

Assim, este campo de investigação tem como objetivo básico a identificação de mudanças de mentalidades (invisíveis) que refletem-se no meio social de forma visível, a partir de manifestações em diversas instâncias (). Procura-se, portanto, detectar e acompanhar as “práticas, rituais, representações e discursos, vinculados a determinados artefactos, com o objetivo de compreender comportamentos e mentalidades emergentes que refletem mudanças do espírito de um tempo” (). Estes sinais e objetos que permeiam o campo do visível – entendidos como manifestações de tendências – geralmente indicam padrões. Estes padrões e suas respectivas relações, importantes para a análise cultural, revelam sinais, conexões ou mesmo rupturas (Williams 63), além de mentalidades relacionadas. A tendência sociocultural é assim constituída pela ligação entre mentalidades, objetos e padrões (). Como bem colocado por Nelson Gomes e colegas (Roteiros 236):

Um padrão de comportamento ou de replicação de um objeto de tendência é indicador da proliferação da adesão a determinada prática, representação ou artefato. Estes padrões relacionados com objetos de tendências revelam as mentalidades por trás dos mesmos e esta ligação entre as mentalidades, os objetos e os padrões de comportamento associados compõem a tendência sociocultural.

Neste sentido, o padrão ou os objetos isolados não constituem a tendência. O exercício de articulação entre o padrão, o objeto/sinal (ou manifestação de tendências) e as mentalidades indicarão o caminho para a tendência sociocultural.

Para uma melhor identificação de mentalidades, Cohen () propôs a aplicação do Circuito da Cultura de Paul du Gay, Stuart Hall e colegas () como instrumento para uma análise cultural mais aprofundada de manifestações de tendências contidas em padrões previamente identificados.

O Circuito da Cultura como protocolo teórico-metodológico para a análise cultural vem sendo aplicado na esfera acadêmica desde o lançamento da primeira edição do livro Doing Cultural Studies: The story of the Sony Walkman, . A proposta inicial do modelo era meramente didática, a partir do estudo de caso do Sony Walkman, mas acabou por ser apropriado no âmbito da investigação científica. Em conformidade com du Gay e colegas (), estes trabalhos acadêmicos são provenientes de áreas distintas, tais como os Estudos de Cultura, a antropologia social, a música, o marketing/branding, o design, a gestão e a economia. Ademais, há um recorrente interesse por este protocolo teórico-metodológico em pesquisas na área da comunicação. Os trabalhos de Escosteguy () – que estabelece uma análise das abordagens de Stuart Hall (), Richard Johnson (1999) e Martín-Barbero (2003) referentes à produção, recepção, circulação e consumo sob a óptica da comunicação –, e de Steffen, Henriques e Filho () – que discorrem sobre a análise cultural como protocolo teórico-metodológico de pesquisas de comunicação – são alguns exemplos. Reconhece-se ainda análises de outros objetos culturais, tais como o telemóvel, como pode ser lido nos trabalhos desenvolvidos por Goggin (); e Rose (), dissertação referente ao estudo cultural do iPhone.

A proposta aqui apresentada se diferencia dessas ao estabelecer a articulação da análise cultural de objetos com metodologias para o estudo de tendências socioculturais. Nesta perspectiva, a análise cultural da SpaceX visa auxiliar a compreensão de mentalidades que permeiam a temática da exploração espacial, por meio de objetos culturais (e respectivas representações) contidos neste universo.

2. A articulação entre os Estudos de Cultura e os Estudos de Tendências

A articulação entre os Estudos de Cultura e os Estudos de Tendências apresentada neste artigo problematiza, sobretudo, o significado cultural de objetos enquanto manifestações de tendências. Considera-se o entendimento de cultura social de Raymond Williams (), que pode ser compreendido como “a descrição de um estilo de vida, que expressa significados e valores na arte, no aprendizado, em instituições e comportamentos. A análise da cultura sob esta perspectiva representa o esclarecimento dos sentidos e valores implícitos e explícitos num modo particular de vida, em uma cultura particular” (48–49). Para Williams, esta abordagem inclui, entre outros aspectos, a análise de elementos de estilo de vida.

O ponto de vista de Grant McCracken () sobre o significado cultural de objetos também nos interessa neste estudo. O autor trabalha esta vertente, na qual o significado cultural transcende o caráter utilitário e o valor comercial do artefacto. De acordo com o autor, há um fluxo constante deste significado cultural “entre seus vários locais no mundo social, auxiliado pelos esforços coletivos e individuais de designers, produtores, anunciantes e consumidores” (). Por conseguinte, pode-se estabelecer uma relação com o valor de uso e o valor simbólico de objetos (), elementos indispensáveis dos produtos na sociedade de consumo.

Ainda neste escopo, Paul du Gay, Stuart Hall e colegas (xxix) também enfatizam o papel da cultura no que diz respeito às práticas sociais e práticas significantes. Para os autores:

The production of social meanings is therefore a necessary precondition for the functioning of all social practices and an account of cultural conditions of social practices must form part of the sociological explanation of how they work. Cultural description and analysis is therefore increasingly crucial for the production of sociological knowledge. ()

Stuart Hall (), por sua vez, defende a importância do significado na definição de cultura (2). Para o autor a cultura transcende o objeto e as práticas relacionadas ao mesmo. É a produção de significados e as trocas que acontecem entre membros de uma sociedade – a interpretação e o sentido do mundo ao redor – que são o elemento relevante da cultura em si (Hall 2). O autor defende ainda que os objetos muitas vezes não têm significados fixos e que o uso, a apropriação, a forma com a qual são comunicados e apresentados ao mundo, além da sua representação, é que vão lhe conferir sentido (Hall 3). Outros fatores considerados por Hall passam pela integração do objeto nas práticas rotineiras e sua respectiva interpretação. Deste modo, o autor dá especial importância à linguagem e ao discurso na cultura (Hall 6). Para ele, a abordagem discursiva é aquela que engloba significado, representação e cultura enquanto constitutivos.

Ainda no mérito do significado cultural dos objetos, Norman e Verganti (2014) complementam esta linha de raciocínio ao estabelecerem uma relação entre tecnologia, significado e inovação. A partir do quadro conceptual de mudanças na tecnologia e mudanças no significado (87), os autores corroboram o argumento de que o artefacto carrega em si não somente a sua usabilidade, mas valores simbólicos.

Os Estudos de Tendências têm a análise cultural como guia condutora para o mapeamento de mentalidades a partir de uma investigação que foca-se na sociedade e suas diferentes dinâmicas. Conforme já mencionado, a análise de tendências se pauta na identificação de padrões, que se manifestam em objetos (e práticas e rituais vinculados).

Neste sentido, as abordagens supramencionadas relativas ao significado e ao valor cultural dos objetos, ao valor de uso e ao valor simbólico, às práticas sociais e às práticas significantes são um importante recurso para a melhor compreensão destes objetos no âmbito dos Estudos de Tendências. Desta forma, propõe-se aqui o uso de práticas dos Estudos de Cultura em uma articulação com os Estudos de Tendências, com o objetivo de se estabelecer uma análise que colabore para uma melhor compreensão dos objetos culturais – entendidos aqui como manifestações de tendência – e os significados por detrás dos mesmos.

3. Metodologia para o estudo de caso

Apresentaremos nesta seção os principais aspectos nos quais se enquadra a análise do Circuito de Cultura () que será aplicado ao estudo de caso da empresa americana do ramo de tecnologia espacial SpaceX, a ser apresentado neste artigo.

Pautados na articulação entre os Estudos de Tendências e os Estudos de Cultura, Gomes, Cohen e Flores () propuseram um modelo para a identificação de tendências composto por três fases, a saber: i) Trendspotting: Observação cultural e recolha de dados; ii) Sistematização da informação; iii) Desenho e arquitetura do ADN da tendência. No entanto, os autores não analisam em profundidade como essa informação é sistematizada e analisada até se chegar ao ADN da tendência em si. Sob esta perspectiva, Cohen () propôs a adição de uma etapa de análise, após a sistematização dos dados e antes do desenho da tendência, em que é feita uma exploração detalhada de um recorte, com a seleção de manifestações de tendências representativas dos padrões identificados na etapa de sistematização da informação coletada.

Este recorte considera uma amostra de manifestações de tendências representativas dos padrões levantados a partir das etapas anteriores. Os objetos selecionados passam por uma análise que inclui o Circuito da Cultura (), além das etapas de arqueologia das tendências, relação com obras de ficção científica e design fiction, identificação da etapa em que se encontra o objeto no Fluxo de Tendências da Tecnologia, o levantamento de mentalidades associadas ao objeto em análise e a aplicação do Modelos de Curvas Sigmoidais Sobrepostas sobre Artefactos Tecnológicos e Mentalidades.

Importa sublinhar que neste artigo dá-se destaque apenas ao Circuito da Cultura, presente na etapa adicional proposta por Cohen como um dos estágios para a identificação de mentalidades associadas aos objetos e a compreensão de um contexto maior, em que estão contidas as tendências tecnológicas. Deve-se ressaltar que o Circuito da Cultura é a etapa que melhor permite uma análise aprofundada do objeto cultural, enquanto as fases subsequentes têm caráter mais contextual e aplicado. Pretende-se demonstrar, a partir de um exercício prático, como o referido circuito pode ser aplicado, enquanto uma das etapas para se chegar à identificação de tendências. As informações identificadas por meio do Circuito da Cultura colaboram para o reconhecimento de mentalidades e a sua respectiva aplicação em outras etapas do processo de identificação e análise de tendências ().

Interessa, assim, explicar a análise que será aqui realizada. O Circuito da Cultura () prevê a análise de representações, identidades (do objeto, da empresa, de profissionais emblemáticos associados), produção, consumo e, quando aplicável, questões relativas à regulação. Nesta perspectiva, o Circuito da Cultura propõe a análise cultural de um texto ou artefacto. Este modelo considera que o estudo do objeto deve abarcar a sua representação – como em peças comunicacionais –, o levantamento de identidades sociais vinculadas, a forma como o objeto é produzido e consumido, assim como os mecanismos que regulam a sua distribuição e o seu uso (). A Figura 1 é a representação gráfica do Circuito da Cultura, conforme proposto pelos referidos autores.

Figura 1 

The circuit of culture (Fonte: ).

É importante ressaltar que o modelo proposto é um circuito, ou seja, não há ponto pré-determinado inicial ou final. Segundo os autores, esse circuito é todo interconectado e, apesar de a representação gráfica ser separada por seções, essas etapas se sobrepõem e se entrelaçam continuamente de maneira complexa. A análise conjunta desses elementos norteia o estudo cultural de um objeto ().

No estudo de caso a seguir este modelo será, portanto, aplicado. A análise debruça-se nas instâncias de representação, identidade, produção, consumo e regulação a partir de uma seleção de comunicações da SpaceX. Na instância da representação deve-se analisar a linguagem textual e visual, analogias, redes semânticas, práticas significantes; no que diz respeito à produção importa analisar narrativas e representações de fatos associados com a tecnologia em questão (), as origens do artefacto e a representação do processo de produção. Para os autores a cultura da produção deve considerar não somente o ponto de vista interno, mas também o externo, de quem vê a corporação de fora, ou seja, a instância da recepção; a identidade deve ser analisada a partir do mapeamento de representações e narrativas da identidade de indivíduos e corporações vinculadas ao objeto, tais como a identidade da empresa e de figuras que personifiquem simbolicamente a empresa ou objeto; na etapa de consumo deve-se compreender a codificação do objeto e a forma como o processo de produção procura estabelecer uma identificação com o público-alvo. A relação entre o design e o processo de desenvolvimento do produto, além da instância da recepção, a forma como os consumidores percebem os produtos, são importantes neste estágio; por fim, a análise da regulação deve compreender como o objeto impacta a sociedade de maneira a requerer regulamentações. Ao considerar as etapas supramencionadas, optou-se por selecionar comunicações da SpaceX disponíveis no canal do Youtube da empresa, assim como a biografia do fundador Elon Musk escrita por Ashlee Vance (), os canais da empresa em sites de redes sociais, artigos científicos e matérias veiculadas em veículos de comunicação. O conteúdo das referidas apresentações, assim como comentários e interações nos canais de social media, são o ponto inicial da análise.

4. O Estudo de Caso: a SpaceX

O estudo de caso da SpaceX faz parte de um recorte do trabalho realizado por Cohen (), no âmbito do mapeamento de tendências tecnológicas. A investigação deu-se entre os anos de 2016 e 2020. Conforme apresentado na metodologia, a investigação conduzida por Cohen continha as etapas de recolha de dados, sistematização e análise, além da identificação das Tendências Tecnológicas. Com o objetivo de se identificar manifestações de tendências e padrões de cunho tecnológico, foi realizado o estudo de três edições do Web Summit nos anos de 2016, 2017 e 2018, que incluiu as etapas de observação cultural e recolha de dados, com a participação presencial, a escolha de palestras por área de interesse, anotações e registros fotográficos. Foram também analisados o website e os palcos, assim como os títulos e descritivos de todas as palestras dos referidos anos, a saber: 343 palestras de 2016; 509 de 2017; e de 501 palestras referentes ao ano de 2018. Estes dados, separados por palcos e por anos, foram organizados em uma planilha e conferidas palavras-chave para cada um deles. Estas palavras-chave foram posteriormente agrupadas por afinidades temáticas (clusters) para cada edição analisada e quantificadas em gráficos. Os dados foram então comparados com aqueles da observação participante. Por fim, foram reconhecidos oito padrões mais relevantes relacionados com a tecnologia, presentes nas edições do Web Summit analisadas, a saber: 1) Sociedade do Espetáculo; 2) Inteligência artificial: medos, riscos e potencialidades; 3) Deep Technology e exploração espacial; 4) Humanidade 2.0; 5) Cidades inteligentes, mobilidade e sustentabilidade; 6) Internet das coisas e convergência; 7) Fintech; 8) Dados: Ética, segurança e democracia.

Vale ressaltar que a identificação de padrões é apenas uma das fases para o mapeamento de tendências. Assim, prosseguiu-se para a etapa de análise de uma seleção de manifestações de tendências que se enquadram nos padrões levantados nas etapas anteriores. Ao se pesquisar por manifestações de tendências tecnológicas, no estágio de Desk Research, o empresário sul-africano radicado nos Estados Unidos, Elon Musk, se destacou como um relevante empreendedor do setor tecnológico, cujas ideias e iniciativas se enquadram na maior parte dos padrões identificados a partir da investigação do Web Summit.

Por conseguinte, chegou-se, dentre outras empresas, à Space Exploration Technologies (SpaceX), representante sobretudo do padrão “deep technology e exploração espacial”, e “cidades inteligentes, mobilidade e sustentabilidade”, que selecionamos para a análise a seguir. Esta análise tem por objetivo identificar outros padrões e compreender mentalidades relacionadas com os objetos tecnológicos, que posteriormente ajudarão na compreensão de tendências socioculturais do domínio da tecnologia.

A SpaceX é uma empresa privada fundada em 2002 por Elon Musk, que, “projeta, fabrica e lança foguetes avançados e espaçonaves”. A corporação tem o objetivo de revolucionar a tecnologia espacial, com a meta final de possibilitar que pessoas vivam em outros planetas. Neste sentido, empresa empenha-se em fabricar uma próxima geração de foguetes reutilizáveis, ultra poderosos e de baixo custo, capazes de levar humanos para Marte e outros destinos do sistema solar. Elon Musk, enquanto fundador da SpaceX, deixa claro em seus depoimentos que o objetivo maior da empresa é o de viabilizar o estabelecimento de uma cidade autossustentável em Marte e tornar a humanidade uma espécie interplanetária.

Até março de 2021 a companhia anunciava em seu site os produtos, a saber: Os foguetes Falcon 9, Falcon Heavy e SuperHeavy (este em desenvolvimento); As espaçonaves Dragon e Starship (esta também em desenvolvimento); o projeto Starlink, rede de satélites que viabiliza internet banda larga em todo o mundo, mesmo em lugares remotos (em fase de implementação).

A SpaceX destaca-se perante a concorrência com os diferenciais de ser uma corporação privada; e que desenvolve produtos que visam o melhor aproveitamento sustentável dos foguetes e espaçonaves, com retorno seguro à Terra. É importante ressaltar que por hora a SpaceX é majoritariamente uma empresa B2G (Business to Government). Com a recente missão espacial orbital 100% civil, Inspiration4, ocorrida em setembro de 2021, começa a haver o consumo final por pessoas “comuns” (Business to Consumer, B2C). Os lançamentos e a comercialização dos serviços da Starlink também colaboram para o direcionamento B2C. Ainda assim, a empresa tem um forte trabalho de comunicação, em que divulga seus feitos, faz transmissões ao vivo, anuncia e explica o desenvolvimento de seus produtos, sobretudo em canais da internet, direcionados a um auditório massificado. O plano de Musk de “tornar os humanos uma espécie interplanetária” é ambicioso e a divulgação em plataformas digitais representa um interessante instrumental. A SpaceX – mesmo sendo uma empresa privada – soma-se à NASA na realização de um trabalho de propaganda dos Estados Unidos enquanto um importante protagonista da exploração espacial.

Por conseguinte, o “consumo” da SpaceX por civis se dá majoritariamente por meio das estratégias de divulgação da empresa, além de uma modesta linha de produtos de merchandising da marca, como bonés, camisetas e protótipos, disponíveis na loja virtual do site da empresa.

4.1 O Circuito da Cultura aplicado à SpaceX

No seguimento da análise da SpaceX, enquanto manifestação de tendência e objeto cultural, será apresentada abaixo a referida articulação com o Circuito da Cultura e os elementos relacionados com representações, identidades, produção, consumo e regulação. A análise que se desenvolve a seguir tem em conta diferentes produtos comunicacionais da empresa, tais como o website da SpaceX e vídeos disponibilizados no Youtube relativos aos feitos da empresa, tais como “Starship update”, de 28 de setembro de 2019; a segunda “Starlink Mission”, de 11 de novembro, 2019; o lançamento do veículo Tesla Roadster, “Falcon Heavy & Starman”, de 28 de setembro de 2019; “Crew Demo 2”, de 31 de maio de 2020; a parceria NASA/SpaceX, “Crew-1 Mission | Launch”, de 15 novembro de 2020; “Crew-2 Mission | Launch”, de 23 de abril de 2021. Ademais, considerou-se também a biografia de Elon Musk escrita por Ashlee Vance () artigos científicos publicados por e .

4.1.1 Representações e Identidade

Conforme já explanado, a maneira na qual um objeto é representado vai ser determinante para a construção do seu significado cultural. Para Du Gay et al () a produção de sentido de objetos físicos ou eventos independe de terem sido vistos ou experimentados na vida real. A simples representação, como em filmes, colaboram na produção de sentido. Para os autores, a construção de sentido é a ponte entre o mundo material e o mundo simbólico, da linguagem, pensamento e comunicação ().

Este é justamente o caso da SpaceX. Afinal, a maior parte dos produtos desenvolvidos pela empresa são divulgados por ela, mas não são tangíveis para a grande maioria dos consumidores. As representações da SpaceX cumprem essa ponte, ao fazer com que a empresa ocupe o imaginário dos indivíduos, mesmo que eles não consumam o produto em si, ou nunca o tenham visto no mundo real. A maior parte das pessoas conhece a SpaceX e seus produtos apenas por meio de peças comunicacionais da empresa, nomeadamente suas divulgações online, ou de notícias mediáticas.

Muitas vezes o objeto cultural é também compreendido por meio de analogias, semelhanças e diferenças (). No caso da SpaceX a missão inicial da empresa era ser uma espécie de Southwest Airlines do espaço (Vance 113). O objetivo seria construir – de forma privada e independente de governos – os foguetes mais baratos e mais velozes existentes (Vance 114). Na visão de Elon Musk esses foguetes devem ser reaproveitáveis, assim como os aviões, para que os custos para o acesso ao espaço sejam reduzidos.

A análise da identidade se dá por meio do mapeamento de representações de indivíduos, grupos e corporações vinculadas ao objeto em questão. Por conseguinte, devem ser considerados na análise fatores como a identidade da empresa fabricante, indivíduos que representam uma personificação simbólica da corporação ou produto, discursos relacionados com a identidade nacional do artefacto ou de figuras emblemáticas relacionadas com os mesmos ().

Neste contexto, a SpaceX está diretamente relacionada com uma identidade americana. O posicionamento nacionalista americano está presente desde a gênese da SpaceX. Nas palavras de Vance (114) a empresa seria uma tentativa americana de reiniciar os negócios do ramo espacial, com uma nova abordagem, contemporânea, em uma indústria que parecia estagnada nas últimas décadas. Quando se pensa em conquista espacial é inevitável a associação com os Estados Unidos da América (EUA) e com a imagem da NASA. A SpaceX reforça, assim, este vínculo com os EUA enquanto protagonista da conquista espacial. Apesar de a SpaceX trabalhar de forma comercial com outros países e instituições, a empresa assume o nacionalismo americano. Exemplos da ode aos Estados Unidos estão presentes na maior parte dos produtos e peças comunicacionais da companhia, tais como: na contagem regressiva de lançamento da segunda missão Starlink em 11 de novembro de 2019, a narradora profere ao vivo “Go USA” no momento do lançamento do foguete; a bandeira dos EUA está presente ao lado da marca gráfica da SpaceX não somente nos foguetes, mas também nas vestes dos astronautas e de profissionais das equipes envolvidas, assim como nas plataformas de lançamento, entre outros exemplos; os protótipos dos foguetes e espaçonave no site da SpaceX também têm a bandeira dos EUA ao lado da marca gráfica da empresa (conforme a Figura 2 abaixo).

Figura 2 

Figura 2 Espaçonave Dragon com bandeira americana e marca gráfica da SpaceX.

Fonte: www.spacex.com/vehicles/dragon/.

Na Figura 3 (abaixo) os astronautas da missão Crew Demo 2 Robert Behnken e Douglas Hurley vestem os trajes espaciais da SpaceX, em que nota-se a bandeira dos EUA. Os funcionários da SpaceX nos bancos dianteiros, vestem trajes pretos que também têm a bandeira americana no braço. Curiosamente, os astronautas são transportados em um veículo Tesla model X, o que associa as duas empresas de Musk nas estratégias de comunicação.

Figura 3 

Astronautas Robert Behnken e Douglas Hurley a bordo de um veículo Tesla (frame do lançamento Crew Demo-2 Launch).

Fonte: Crew Demo-2 Launch, disponível em youtu.be/xY96v0OIcK4.

Vale ressaltar que os lançamentos da SpaceX de 2020, com as missões tripuladas Crew Dragon Demo-2 e NASA SpaceX Crew-1, colocaram os Estados Unidos de volta ao mapa da conquista espacial, com voos tripulados saindo do território americano. Desde o encerramento das operações da Space Shuttle em 2011, que não saíam voos tripulados do solo americano.

A comunicação da empresa relativa a estas missões apresenta, a todo momento, referências ao país. Afinal, a conquista espacial é uma forte propaganda dos Estados Unidos da América enquanto potência. Mesmo que o país não seja o único empenhado na missão espacial, os EUA são aqueles que melhor propagandeiam seus feitos para o mundo. A exemplo disso, a bandeira americana aparece recorrentemente nos vídeos analisados, com enquadramentos de destaque.

Outro exemplo é a marca gráfica Launch America, presente nas transmissões ao vivo das missões tripuladas analisadas, que é reforçada pela presença de estrelas e das cores da bandeira americana no cenário dos estúdios. Na Figura 4 (abaixo) os comentaristas da NASA e da SpaceX apresentam o lançamento da missão Crew Demo 2 em um cenário composto pelas marcas gráficas da NASA, da SpaceX e da vinheta Launch America.

Figura 4 

Marca gráfica Launch America, ao lado das marcas da NASA e da SpaceX (frame da apresentação Crew Demo-2 Launch).

Fonte: Crew Demo-2 Launch, disponível em youtu.be/xY96v0OIcK4.

Ainda no que tange a relação da identidade e representação da SpaceX em articulação com os EUA, um outro exemplo representativo foi o lançamento da missão tripulada Crew-2 – uma parceria da NASA com a SpaceX – ocorrida no dia 23 de abril de 2021. Na ocasião, dois astronautas americanos, além de um japonês e um francês embarcaram no foguete da SpaceX no Kennedy Space Center, na Flórida (EUA), rumo à Estação Espacial Internacional. O feito foi transmitido nos canais da SpaceX e da NASA simultaneamente. Durante parte da transmissão as imagens eram acompanhadas da referida vinheta Launch America e um letreiro na parte superior do ecrã também com os dizeres “launch america” e discretas estrelas. O discurso da divulgação desta missão tocava muito no mote de “inspirar futuras gerações” e “fazer ciência”, com recorrentes explicações inspiracionais, como a história de como os astronautas iniciaram suas carreiras. A apresentação passava uma imagem dos Estados Unidos, da SpaceX e da NASA como fontes de inspiração para futuras gerações, por meio da conquista espacial. O fato de os últimos lançamentos tripulados terem saído de solo americano e serem viabilizados por uma empresa americana é motivo de orgulho, que se reflete nas representações analisadas.

Ainda no quesito nacionalista, Elon Musk, enquanto figura emblemática por trás da SpaceX, tem um desejo claro de “inspirar e revigorar as massas em suas paixões pela ciência, conquista e a promessa de tecnologia” (Vance 101), o que se reforça no discurso presente no lançamendo da missão Crew-2 supramencionado. Na biografia de Musk, Vance ressalta que quando da criação da SpaceX o visionário tinha um senso de indignação de que a NASA não estava com planos concretos para explorar Marte. Para Musk, “a própria ideia de América estava entrelaçada com o desejo de explorar” (Vance 101). Neste sentido, há em Musk um desejo de revitalizar a “alma” americana e o espírito da Doutrina do Destino Manifesto (Manifest Destiny), além de trazer esperança para a humanidade. Nota-se, portanto, um patriotismo americano forte, que por vezes se assemelha a algo ficcional, saído de histórias como aquelas de super heróis - também americanos.

Quando se aborda a identidade da SpaceX, Elon Musk acaba por ser o porta-voz mais representativo da empresa. De acordo com Vance (218) a SpaceX é a instituição que mais espelha Elon Musk. Ou seja, SpaceX e Musk mesclam-se em suas identidades individuais. Analisamos a seguir uma apresentação da SpaceX publicada na página da empresa no Youtube intitulada Starship Update, de 28 de setembro de 2019. Nela Elon Musk apresenta novidades do Starship, a nave que levará os primeiros humanos para Marte.

A apresentação acontece em um ambiente externo ao lado de um imponente protótipo prateado do Starship. A fala de Musk pode ser considerada inspiradora ao revelar os planos – grandiosos – do empreendedor de estabelecer uma cidade em Marte. O vídeo revela também o lado humano do empreendedor, que curiosamente não se apresenta como um orador com discurso ensaiado para a explanação. No vídeo, o caráter “humano” de Musk também transparece em comentários informais e piadas que soam autênticos. Ele gagueja e também pontua um erro que escapou no slide da apresentação.

No entanto, Musk dá mostras da sua inteligência e envolvimento com o projeto, ao explanar a engenhosidade dos feitos de forma técnica. O empreendedor explica com entusiasmo os passos a serem cumpridos para viabilizar o plano de tornar a humanidade uma civilização interplanetária. Isso reflete também em seu discurso, quando fala de “um futuro excitante, cheio de divagações e possibilidades, em meio às estrelas”. Outro exemplo é quando ele se refere à Starship como sendo “a coisa mais inspiradora” que ele já viu.

Nesta mesma apresentação há comentários do auditório, que ajudam na compreensão da representação da SpaceX e de Musk. Em 4 de novembro de 2019, estavam registrados 4849 comentários no vídeo. Para a análise, selecionou-se uma amostra de 100 comentários que referiam-se a Elon Musk. Estes foram agrupados por comparações, adjetivos, dentre outros. Na Tabela 1 abaixo apresentamos um recorte de comentários representativos, separados por tópicos:

Tabela 1

Seleção de comentários sobre Elon Musk, agrupados por tópicos, extraídos da apresentação Starship Update, disponível no canal do Youtube da SpaceX.


COMPARAÇÕES COM PERSONAGENS HISTÓRICOS

“Elon is truly Henry Ford of our time. Making new forms of transport affordable”.

“This is a moment in history. It’s like seeing Howard Hughes introduce his aircraft. Incredible time to be alive”.

NÃO HUMANO

“Elon talks like an A.I. I won’t be surprised if he is a robot (emoticon)”

“Elon Musk is the most human and non human person ever”

VIAJANTE NO TEMPO

“Elon is obviously a time traveler who is having fun messing around in our timeline”

“Elon is from the year 3000. He traveled back in time to teach us the way of the future”

HERÓI

“My Hero.”

“Real life Tony Stark, except he delivers a speech like me giving class presentations. I love his weirdness”.

VISIONÁRIO

“Elon Musk is a Visionary and a revolutionary person”

“What a great man. He is the visionary the world needs”

INSPIRADOR

“Once in a while humanity gets some individual that stands out among the rest and pushes our society one step forward into the future. I think Steve Jobs was one of them during our time, so I considered him a big loss. But man, I’m so glad we got Elon these days. He really does make the future sound exciting”

“Elon Musk will be remembered as one of the men who inspire humankind to become interplanetary life from. Genius!”

GENIAL

“This guy is so smart it’s scary”

“When Stephen Hawking died it felt like humanity lost its most prized possession. Elon has quickly proved that there are more inspirational genius dreamers left among us. Thank you people of SpaceX”.

ESTRANHO

“He’s so awkward but I love it”

“What a weird and absurd speaker yet interesting at the same damn time”

DROGADO

“Is he on drugs?”

“he smokes too much weed”

SEM HABILIDADES DISCURSIVAS

“I love that he’s a bad speaker, it just makes me trust him more”

“The fact that I trust a poor public speaker like Musk more than most exceptional public speakers in politics goes to show something.”

GRATIDÃO

“Elon and SpaceX are literally turning sci-fi into reality. Thank you for feeding our dreams and imagination. Go on SpaceX, we are with you! (emoticon)(emoticon)”

“Thank you Elon. On a world where billionaires hoard their cash and die having achieved nothing real, you have truly broken the mould”

(Fonte: https://youtu.be/sOpMrVnjYeY. Acesso em 8 de novembro de 2019).

Em suma, a percepção é de uma imagem positiva de um empreendedor genial que transita no limiar do inacreditável e espetacular, ao tentar viabilizar um sonho da humanidade (por meio do Starship e a simbologia do povoamento humano em Marte), para a humanidade. A suposta falta de preparo discursivo e o fato de Musk gaguejar, aliados ao seu entusiasmo autêntico, ajudam o auditório a percebê-lo de forma humanizada. Por outro lado, é interessante notar referências a obras de ficção científica – que colocam-no na posição de herói. Musk é também comparado a importantes empreendedores e inventores históricos, o que reflete sua genialidade e engenhosidade. Por outro lado, a inteligência do empreendedor, o coloca também numa posição de não humano, uma espécie de robô, ou viajante no tempo. Alguns ainda percebem-no como um estranho ou drogado. No entanto, essa característica sobre humana também reflete uma percepção quase messiânica de Musk.

Outro ponto relevante é de como Elon Musk atua como uma espécie de tradutor das mentalidades contemporâneas ao se propor a realizar – de forma concreta - desejos da humanidade. Pode-se considerar que Elon Musk tem o poder de influenciar o imaginário coletivo e a emergência de mentalidades a partir dos feitos tecnológicos sob o seu comando. As associações relacionadas com Musk apresentadas acima mostram que a SpaceX e os produtos vinculados a ela carregam em si representações de sobrevivência, evolução natural, perpetuação da espécie, esperança, sonho e inspiração.

Elon Musk, além de empreendedor, projeta uma imagem de si enquanto cientista. São recorrentes as publicações de artigos científicos assinados por Musk que apresentam soluções para viabilizar os seus planos em Marte. Essa abordagem lhe confere credibilidade e sustenta a imagem percebida de empreendedor genial, que se envolve em todas as esferas de seus negócios: da concepção à produção; da ciência e da tecnologia ao design.

Rede Semântica

A linguagem e o discurso colaboram para a identificação de conotações, associações e significados relacionados aos objetos culturais. O estabelecimento de redes semânticas associadas aos objetos em análise, que fazem parte de formações discursivas próprias () são recursos importantes para se mapear o significado cultural de um objeto. Apresentamos a seguir a rede semântica identificada para a SpaceX:

  • Conquista Espacial; Foguetes Reaproveitáveis; Sustentabilidade; Vôos Comerciais; Marte; Humanos: Espécie Interplanetária; Civilização em Marte; Tecnologia; Propulsão; Aterrissagem.
  • Desafios; Combustível; Redução de custos; Segurança; Sustentabilidade.
  • Transporte; Redução de distâncias;
  • Exploração; Evolução Natural; Perpetuação da Espécie; Sobrevivência; Esperança; Ambição.
  • Satélites; Internet; Conexão; Democratização do acesso à internet; Difusão da Informação.
  • Sonho; Paixão; Ciência; Ficção Científica; Perseverança; Coragem; Realidade; Viabilidade.
  • Estados Unidos da América; Patriotismo; Exploração; Conquista; protagonismo; Heroísmo; Inspiração; Futuro; Salvação; Esperança; Desenvolvimento Tecnológico; Poder.
  • Elon Musk; Empreendedor; Visionário; Genial; Herói; Inspirador; Autêntico; Não humano; Louco; Estranho; Gago; Salvador.
Práticas Significantes

A identificação de práticas significantes é um outro instrumento de análise. Du Gay et al () explicam que as práticas sociais vinculadas ao artefactos – tais como mudanças de hábitos, novas formas de comunicar ou interagir com o mundo – os tornam parte da cultura de uma sociedade e expandem seus significados e valores.

Neste quesito, apesar de o plano para se chegar a Marte ainda ser uma visão, com tecnologias em desenvolvimento, pode-se dizer que a SpaceX e os seus respectivos produtos – por meio de estratégias de divulgação – têm restaurado o interesse na pesquisa espacial, na ciência dos materiais, na física, entre outros aspectos científicos de um modo geral. A esperança e o interesse no espaço aos poucos se reacendem, depois de anos adormecidos. A SpaceX e a nova era de pesquisa espacial têm potencial para transformar a sociedade. Se os planos de Musk se concretizarem, a viagem espacial comercial poderá passar a ser uma realidade incorporada à rotina.

4.1.2 Produção e consumo

Como já mencionado anteriormente, o Circuito da Cultura é não linear e prevê que os seus eixos se articulem e se integrem de uma maneira orgânica. Neste sentido, a análise aqui realizada prevê a sobreposição das instâncias de produção e consumo que serão apresentadas a seguir.

Para Paul du Gay e colegas (51), se o produto não é consumido ele é desprovido de significado cultural. A análise da produção de um artefato cultural não considera somente a produção técnica do objeto em si, mas também como o objeto é produzido culturalmente, ou seja, a forma na qual ele adquiriu sentido cultural durante o processo de produção. O que deve ser analisado nesta instância são “as diversas narrativas e representações de fatos associados com a tecnologia em questão” (). Além da representação cultural do artefacto, deve-se considerar a forma como o processo de produção foi representado (interna e externamente).

Já no que tange o consumo, nesta etapa deve-se procurar compreender a codificação do objeto, que carrega uma série de significados, e a forma como o processo de produção estabelece uma identificação do público-alvo (grupo de consumidores) com o objeto. Esta etapa foca-se na relação entre o design e processo, sob viés de como os profissionais vinculados ao desenvolvimento do produto tentam articular a produção e o consumo. Ademais, analisa-se também a forma na qual o objeto é percebido pelos consumidores. Ainda neste âmbito du Gay, Hall e colegas consideram também estratégias de marketing que conectam o produto ao consumidor. Para os autores (51) as instâncias de produção e consumo estão interconectadas e articuladas, uma vez que se um produto é produzido, mas não é consumido, ele será desprovido de significado social.

Tendo estes fatores em conta, é interessante observar que o consumo da SpaceX é muito mais ideológico e simbólico. No caso em questão, ocorre o consumo da representação da SpaceX e de produtos relacionados, em detrimento do produto físico/serviço em si. Afinal, foguetes não são produtos ainda tangíveis pelas massas. Apesar de o cenário de turismo espacial começar a dar os seus primeiros sinais de existência, com esforços não somente da SpaceX (como na missão Inspiration4), mas de outras empresas como a Virgin Galactic (fundada por Richard Branson) e a Blue Origin (fundada por Jeff Bezos), esta realidade ainda é restrita. A SpaceX é, portanto, uma empresa privada que vende os seus serviços (viagens espaciais, transporte de carga espacial etc) majoritariamente para governos e instituições de pesquisa espacial e que aos poucos chega ao consumo civil.

A corporação desempenha o papel de despertar na população o interesse pela ciência e tecnologia, além do desejo tangível de futuras viagens espaciais factíveis. Por conseguinte, entende-se que as narrativas relacionadas ao desenvolvimento da tecnologia espacial da SpaceX são importantes para despertar esses sentimentos. Não se pode deixar de lado a relação estabelecida entre a SpaceX, a NASA e os EUA. Portanto, as referidas narrativas desempenham também um papel de promoção do consumo da propaganda americana.

A SpaceX trabalha com a divulgação por meio de eventos, exibidos ao vivo em canais de social media, sobretudo Youtube, das suas últimas novidades, planos e desafios, missões e lançamentos de foguete, entre outros exemplos. A empresa também usa recorrentemente animações de design fiction (; ; ; ) para aproximar o público dos projetos em desenvolvimento e trabalhar o imaginário do auditório de uma forma verossímil. Estas animações cumprem relevantes papéis, como o despertar a esperança e a crença de que os projetos são viáveis, o que colabora para a preparação das mentalidades coletivas para uma futura realidade interplanetária. Consequentemente, o auditório consome a inspiração e o sonho de conquista vinculados à SpaceX.

Comentários em vídeos do Youtube referentes à empresa, sustentam as colocações acima, ao refletirem a imagem percebida pelo auditório das comunicações da SpaceX. Foram analisados comentários nas apresentações disponíveis no Youtube, de 27 de setembro de 2016, e 28 de setembro de 2019, ambas relativas ao Starship e o projeto de tornar Marte um local habitável. Dentre esses comentários, destacam-se aqueles que colocam a SpaceX no papel de escrever parte da história da humanidade; do início de uma nova era espacial; da admiração pelos feitos de Musk e da SpaceX; do fato de se viver em um tempo muito aguardado por toda a humanidade; dentre outros.

Uma outra estratégia de marketing institucional da empresa (em parceria com a Tesla) foi o lançamento de um veículo Tesla Roadster no espaço. Em 8 de fevereiro de 2018 a SpaceX realizou o vôo teste do Falcon Heavy com o referido carro como carga. O Roadster tinha como “motorista” um manequim com traje de astronauta, apelidado Starman – em uma clara referência à música de David Bowie e o álbum The Rise and Fall of Ziggy Stardust, de 1972. Na ocasião, o Roadster foi colocado em órbita e o feito foi transmitido ao vivo durante 4 horas – no canal da SpaceX no Youtube.

Na apresentação de Musk de 28 de setembro de 2019 sobre o Starship, o empreendedor revelou que o objetivo de lançar um Tesla no espaço era para capturar a imaginação das pessoas e torná-las animadas com a perspectiva da conquista espacial, a partir de algo “divertido”. Na placa de circuito foi revelada a mensagem “Made on Earth by Humans”. Apesar de a mensagem ser em nome da humanidade, simbolicamente os EUA marcam seu território no espaço. É interessante perceber que o Roadster em órbita com uma mensagem escondida sublinha o feito de Carl Sagan em 1977 com as espaçonaves Voyager 1 e 2, que vagam pelo espaço desde então.

Ainda no que diz respeito às instâncias de produção e consumo, como já visto anteriormente, para du Gay, Hall e colegas, o designer, enquanto mediador cultural, tem o trabalho simbólico de conferir significado aos produtos. Elon Musk é conhecido por se envolver em todas as etapas de seus negócios, inclusive na concepção e design dos produtos. A estética da espaçonave Dragon, por exemplo, é muito branca e “limpa”, repleta de telas sensíveis ao toque, que, segundo os engenheiros responsáveis, apresentam uma usabilidade intuitiva. Destoa de outras espaçonaves como Apollo e Space Shuttle, que aparentavam grande complexidade e eram repletas de botões “retro-futuristas”. Percebe-se, ainda, que de maneira proposital os foguetes SpaceX e Starship fazem referência à franquia ficcional americana Star Wars, o que reforça o elo entre tecnologia e ficção científica (Dourish e Bell 2014; ). Os Foguetes Falcon carregam em si a analogia declarada à espaçonave Millenium Falcon do StarWars. Já Starship faz referência às várias naves da série, também conhecidas como “Ships”.

Ademais, o traje de astronauta usado à bordo da Dragon foi concebido pelo figurinista Jose Fernandez, profissional responsável pelo design de capacetes e vestes de super heróis de grandes produções cinematográficas americanas como Batman e o Iron Man. Essa aproximação com o universo ficcional reforça ainda mais a representação da empresa como uma entidade americana com “super poderes e que vai salvar a humanidade”. Os astronautas, ao vestirem os trajes da SpaceX (Figura 5, abaixo), assumiriam a identidade de heróis, o que colabora para o espetáculo da conquista espacial americana.

Figura 5 

Traje de astronauta da SpaceX.

Fonte: www.spacex.com/dragon. Acesso em 10/11/2019.

Observa-se, ainda, que a produção dos artefactos da SpaceX é cuidadosamente relatada em redes sociais, com destaque especial para o Youtube e o Twitter. A empresa não investe em publicidade tradicional. Conta com as redes sociais como ambiente para se estabelecer uma narrativa do desenvolvimento de seus produtos e, paralelamente, conquistar o auditório para reforçar os valores inerentes à SpaceX.

4.1.3 Regulação

Por fim, a regulação deve ser analisada sob o ponto de vista de como um artefacto impacta a sociedade de maneira a implicar na necessidade de se regulamentar o uso do mesmo. A regulamentação cultural e os problemas derivados dela também devem estar no espectro de análise ().

Neste sentido, a SpaceX enfrenta regularmente desafios que concernem a regulação. As questões tramitam em várias esferas, dentre as quais a regulação para a instalação dos milhares de satélites da Starlink, tópicos referentes ao espaço aéreo e o conflito com rotas de aviões, além da regulação de serviços espaciais comerciais. Inevitavelmente, na medida em que os voos comerciais espaciais desenvolvem-se, novos problemas e questões surgirão, o que exigirá a elaboração de novas leis.

5. Conclusão

O Circuito da Cultura, enquanto modelo dos Estudos de Cultura, fornece um rico instrumental que ajuda a melhor compreensão do objeto cultural de uma forma sistematizada. A análise cultural de manifestações de tendências auxilia no levantamento das mentalidades associadas e no estudo de tendências socioculturais.

A análise da SpaceX revelou que a empresa tem um significado cultural que reflete um valor simbólico dos Estados Unidos da América como potência na conquista espacial. A SpaceX colabora para a propaganda americana e traz consigo um significado cultural que abarca o imaginário da conquista, o instinto da sobrevivência, o desejo da viagem espacial, a crença na civilização de Marte e a esperança. Esses sentimentos são sustentados por um discurso que narra cada passo dado na saga para viabilizar o sonho de tornar o homem uma espécie interplanetária, a partir de esforços para a redução de custos de forma sustentável. Por meio de estratégias de comunicação, a empresa, personificada na imagem de Elon Musk, revela seus feitos tecnológicos, seus acertos e erros, e trabalha a ideia de um futuro interplanetário viável. Consequentemente, desenvolve-se em um plano invisível as mentalidades associadas. Musk atua, deste modo, como um tradutor do espírito do tempo e um porta-voz por vezes muito humano e mundano, por vezes sobre humano, heróico e messiânico. A sua representação passa a mensagem de que afinal a humanidade tem salvação.

O fato de a SpaceX ser americana e de Musk, radicado nos EUA, ter um posicionamento patriota declarado, acabam por conferir uma forte identidade americana à marca. A análise mostrou essa relação em diversas instâncias, como na recorrência da bandeira americana em diferentes objetos, na vinheta launch america, nas narrativas e discursos que reforçam o protagonismo americano durante as apresentações ao vivo, entre outras. Ademais, a empresa foi responsável por possibilitar que foguetes tripulados voltassem a sair de solo americano. Por consequência, a SpaceX colabora para que os EUA sejam compreendidos como a nação que projeta a esperança por meio do desenvolvimento tecnológico e de um novo protagonismo na conquista espacial. Com a pandemia Covid-19 nos anos de 2020 e 2021, as mensagens de esperança e salvação americana acabam por serem particularmente convenientes.

Neste sentido, pode-se concluir que a imagem da SpaceX está vinculada com valores tais como: exploração, sobrevivência, perpetuação da espécie, ambição, desenvolvimento tecnológico, sustentabilidade, inspiração, sonho, coragem, perseverança e futuro. Não se pode deixar de lado o cunho espetacular que a empresa tem em suas divulgações. Os valores mencionados associam-se não somente com a SpaceX, mas também com os EUA enquanto palco no qual o espetáculo espacial é estrelado. É importante ressaltar que a ascensão do turismo espacial, enquanto realidade concreta, fornecerá cada vez mais insumo para a investigação e a análise do tema.

Enquanto du Gay e colegas consideram que o significado social de um produto surge a partir do seu consumo, o estudo de caso sinalizou que o significado cultural de objetos tecnológicos, como foguetes, começa a ser criado a partir de um consumo que transcende a concepção tradicional. A partir de peças comunicacionais que relatam os feitos da empresa, a SpaceX trabalha em seu auditório o consumo ideológico e conceptual dos seus valores e artefactos em desenvolvimento.

A análise cultural da SpaceX, enquanto representante do padrão de Deep Technology e Conquista espacial, colabora, assim, para uma melhor compreensão do espírito do tempo e o mapeamento de mentalidades, importantes para a tradução de tendências socioculturais de cunho tecnológico. Deve-se ressaltar que a análise aqui apresentada, pautada no Circuito da Cultura, é apenas uma parte de um todo no processo de identificação de tendências socioculturais. A somatória dos padrões tecnológicos identificados, com esta análise e aquelas de outras manifestações de tendências - em conformidade com os métodos e práticas propostos por Cohen - contribui para o mapeamento das tendências socioculturais do domínio da tecnologia.

Por fim, pode-se concluir que as fundamentações dos Estudos de Cultura fornecem uma base sólida para os Estudos de Tendências, com uma aplicação prática viável, que enriquece a análise cultural do objeto. O método faz também uma importante ponte, entre o campo do visível e do invisível, ao atuar como um instrumento de tradução desse processo.