The Stately Homes of England,
How beautiful they stand,
To prove the upper classes
Have still the upper hand (…)
The Stately Homes of England,
Tho’ rather on the blink
Provide a lot of reasons
For what we do and think (…)
(“The Stately Homes of England”, Nöel Coward, 1938)

Quando Nöel Coward compôs a canção The Stately Homes of England em 1938 cobriu de paródia um tema caro à nação, dissecando o que restasse da aristocracia inglesa entre duas guerras mundiais e das suas propriedades latifundiárias, em perigo de degradação. Nesse sentido, a casa de campo condenada a uma negligência generalizada e à impossibilidade de ser o que foi outrora – mercê de factores que aqui serão aflorados – torna-se metáfora do estado de um país. O narrador de (1945), Charles Ryder, artista e amante de casas de campo, fala-nos acerca de uma masmorra, a partir de uma masmorra. Parecendo irónico que quem está habituado ao deslumbramento da paisagem natural e arquitectónica se encerre em perímetro tão exíguo e claustrofóbico como o que comummente associamos a um espaço de aprisionamento, não deixa de fazer sentido que a condição em que se encontra esteja ligada a um imaginário de antanho, como sejam as épocas obscuras da medievalidade. Porque Charles, um “dear boy” (assim o trata o pai erudito e distante) educado em Oxford, filho – e ao mesmo tempo órfão – de uma classe média enaltecida, vive refém de um símbolo, símbolo esse consubstanciado na imagem imponente, monumental e sagrada da mansão de Brideshead, reduto da muito disfuncional família Flyte. Ora acontece que a mansão fora edificada a partir das ruínas de um antigo castelo, a que remontariam os antepassados de Lord Marchmain. Donde se explica, de imediato, esta imagem tingida de memória feudal.

Partindo do conceito de “lieu de mémoire” postulado pelo historiador Pierre Nora, segundo o qual uma entidade (material ou não) carrega em si significação simbólica no contexto de uma percepção identitária individual e colectiva, pretende-se verificar como neste romance de Evelyn Waugh instituições seculares inglesas, tais como a universidade ou a casa senhorial, operam o seu processo de cristalização e monumentalização. Concomitantemente, como se verá, a obra presta-se a leituras que colocam o indivíduo perante a associação lugar de memória (ou rememoração) / lugar de luto, onde o passado se faz dolorosamente presente. Se, como diz Nora, a história é a reconstrução, sempre problemática e incompleta do que já não é, concebendo apenas o que é relativo, então a memória traduz-se na perpetuação de uma consciência (individual e colectiva) absoluta que não se perde em continuidades temporais mas que se fixa na concretização de um espaço, de uma imagem, de um objecto (cf. ). Brideshead é, para Charles, esse lugar de memória que desafia quer a sua orfandade espiritual, quer a decadência da sociedade de onde a ele regressa.

I

Evelyn Waugh inscreve no subgénero de Bildungsroman para a geração Bright Young Things e situa o seu protagonista, rapaz sensível propenso a reverberações melancólicas, entre um plano, contingente, e outro, transcendente e sublimado, num texto crivado de “moments of vision” woolfianos. Tais momentos podem ou não ser meras ilusões, podem ou não ater-se a uma memória historicamente informada, mas acorrentam-no, nessa masmorra mental de onde nos interpela, a um universo do qual, em boa verdade, não quer sair. Da queda para uma atitude soturna e introspectiva nos dá conta o próprio Charles ao apresentar-se como um jovem que vivera

a lonely childhood and a boyhood straitened by war and overshadowed by bereavement; to the hard bachelordom of English adolescence, the premature dignity and authority of the school system, I had added a sad and grim strain of my own. (BR 45)

O apego à memória de um lugar, que é por sua vez um lugar a partir do qual outras memórias vão surgindo, num exercício de mise en abîme constante, servirá o propósito fulcral do autor em reconduzir o espaço e as pessoas que o habitam a um estado originário de glória, poder e reverência. Mesmo que para tal não seja necessário recuar séculos e séculos. Recuemos, então, cerca de vinte anos, ao momento em que no prólogo, o narrador, aquartelado numa velha casa senhorial ocupada agora pelas tropas do exército britânico, recorda a juventude idílica ali passada na companhia da família a que já se aludiu. Em breves pinceladas, importa saber que Charles se apaixona por Sebastian e mais tarde pela irmã deste, com quem consumará um desejo há muito adormecido. Importa também saber que no decorrer de um período que vai de 1923 a 1943 todas as personagens se vão perdendo umas das outras, ou por morte ou por afastamento consciente.

Actuando, porém, como um íman ou força centrípeta ao serviço de um destino imutável, a casa de Brideshead ainda surge no horizonte bucólico de Yorkshire como o exemplo acabado de uma instituição de natureza material, simbólica e funcional, cujo ethos vinha sendo associado a uma ideia de ordem publicamente articulada – relação aliás desenvolvida por Laura Coffey num estudo crítico recente, “Evelyn Waugh’s Country House Trinity: Memory, History and Catholicism in (). Surge assim, aos olhos de Ryder, como um “lieu de mémoire” tal como o historiador Pierre Nora o postula, a saber: simples e ambíguo, natural e artificial, capaz de induzir uma experiência sensorial (e sensual) concreta e, simultaneamente, passível da cogitação mais abstracta (cf. ). É também lugar ligado à vida e à morte, ao colectivo e ao individual, ao sagrado e ao profano (não por acaso o subtítulo da obra é The Sacred and Profane Memories of Captain Charles Ryder), ao mutável e ao imutável (ibidem 19).

Sendo que, ainda segundo Nora, um dos poderes fundamentais de um lugar de memória é o de parar o tempo, travando assim a engrenagem do esquecimento (ibidem), convirá relevar a dimensão nostálgica (posto que nostalgia vem do grego nostos, que significa regresso a casa) do discurso do sujeito. É então o acto de lembrar, instado por esse regresso inesperado, que inspira em Charles uma demanda de identidade (individual e colectiva). De resto, à sua maneira, não deixa ele de ser uma espécie de historiador (“the task of remembering makes everyone his own historian” cf. ), capaz de, no exercício da profissão que escolheu – certamente influenciado pela fruição estética dos anos dourados passados em Brideshead – pintar material e alegoricamente esse mundo, tentando decifrar o que é à luz do que já deixou de ser (ibidem 18).

Ora, em certa medida, o que Nora nos diz é que há que distinguir história de memória no sentido em que a primeira é uma representação do passado, uma reconstrução, ainda que problemática e incompleta, do que já ali não é e/ou não está; enquanto que a segunda é absoluta e ligada a um presente perene (ibidem 8). Mais nos diz que a memória está circunscrita a lugares, enquanto a história está ligada a acontecimentos. Permitimo-nos rever esta teoria com a seguinte ideia: não será a memória tudo menos absoluta quando está irremediavelmente aberta a inúmeras significações (ibidem 24)? E não o será também porque continuamente a ela recorremos, como Charles a ela recorre para, numa revisitação desse passado que tanto o assombra, diluir a fronteira entre espaço e acção, ou lugar e acontecimento? Não será a memória também uma espécie de trompe l’oeil que muitas vezes nos engana os sentidos? Oxford, essa “sweet city with her dreaming spires” que Matthew Arnold imortaliza em “Thyrsis, a Monody” (1865), constituiria um lugar de memória completamente diferente se Sebastian não tivesse aparecido ébrio à janela do quarto de Ryder na noite em que se conheceram. E a paisagem em redor de Brideshead não teria o mesmo peso se Sebastian não tivesse um dia sugerido irem fazer um piquenique, lançando para o éter como uma ordem irrecusável a frase “I’ve got a motor car and a basket of strawberries and a bottle of Château Peyraguey” (BR 25). De forma mais cabal, estamos perante uma diluição de ambos os planos (o histórico e o memorialista) na cena em que Lord Marchmain, no leito da morte, evoca os seus antepassados cujos feitos valorosos recuam até à mítica batalha de Azincourt.

Temos, pois, que a partir da rememoração (individual) de um lugar (quarto de Lord Marchmain) dá-se a rememoração (colectiva) de um acontecimento histórico (batalha). Do mesmo modo, a partir de um acontecimento, ainda que ficcional (morte de Lord Marchmain), somos transportados para um lugar real (Azincourt). Veja-se igualmente como o retrato dos irmãos de Lady Marchmain remete para as trincheiras da Grande Guerra: “Lady Marchmain, whose brothers’ names stood in letters of gold on the war memorial, whose brothers’ memory was fresh in many breasts” (BR 137). Em última instância, a memória não reconstrói, antes – sendo mais criativa – reinventa o passado, como que reiterando a evidência do dictum faulkneriano presente em Requiem for a Nun (1951) de que o passado nunca está morto; nem sequer passado é.

Mas a morte está sempre por perto. O narrador que cavalga (porque Ryder – “rider” – é o seu apelido, não o esqueçamos) a onda do enamoramento pelos Flyte, sente a presença destes mesmo in absentia, e segue viagem, iludido, pelos espaços onde esses fantasmas ressurgem. Prova disso é o facto de ver operar neles essa metamorfose, dando assim a entender que o fantasma é já memória de quem ali deixará de estar. “In the gloom of that room she seemed a ghost” (BR 199), quando Charles se refere a Julia Flyte, ou “the stillness of death seemed in the house already” (BR 200) atestam essa transposição de fronteira entre dois mundos à qual nem mesmo Bridey, o irmão mais velho, escapa: “He’s like a character from Chekhov. One meets him sometimes coming out of the library or on the stairs – I never know when he’s at home – and now and then he suddenly comes in to dinner like a ghost quite unexpectedly” (BR 246). Brideshead surge como memorial, lugar de memória dos mortos, mesmo que ainda vivos. Deste ponto de vista, Waugh, crítico de uma Inglaterra entre guerras e em ruína civilizacional, período ao qual há uns anos o historiador Richard Overy deu o nome de “morbid age” (Britain and the Crisis of Civilization 1919-1939) parece instituir uma cartografia do luto, remetendo-nos avant la lettre para o conceito de “site of mourning”, de lugar de luto, preconizado por Jay Winter no estudo que consagrou à memória da Grande Guerra e seus monumentos, Sites of Memory, Sites of Mourning: The Great War in European Cultural History (). A preparação, por parte de Mr. Samgrass, de um livro sobre os três irmãos de Lady Marchmain é um acto comemorativo enquanto tentativa de monumentalização da memória individual e colectiva da guerra. Da mesma forma, mais tarde, na pintura de Charles, “remembrance is part of the landscape” (). “I began to mourn the loss of something…” (BR 216), lamenta o anti-herói no decorrer da narrativa, num percurso que o leva de um ritual de iniciação acolhido com extrema devoção à constatação de que transporta, na sua presente situação, uma série de sentimentos já não apenas adormecidos mas mortos, de facto (“As I lay in that dark hour, I was aghast to realize that something within me, long sickening, had quietly died” [BR 11]). Nos primeiros segundos de contacto com o nome da mansão Brideshead aquando do seu regresso durante a guerra, antes mesmo de avistá-la do cimo da colina, Charles tem uma de muitas epifanias presentes na obra. Tal epifania confirma, nesse inesperado retorno, quer um medo-desejo de memória, quer o estatuto de seres híbridos, transparentes e translúcidos das restantes personagens:

He told me and, on the instant, it was as though someone had switched off the wireless, and a voice that had been bawling in my ears, incessantly, fatuously, for days beyond number, had been suddenly cut short; an immense silence followed, empty at first, but gradually, as my outraged sense regained authority, full of a multitude of sweet and natural and long forgotten sounds: for he had spoken a name that was so familiar to me, a conjuror’s name of such ancient power, that, at its mere sound, the phantoms of those haunted late years began to take flight. (BR 21)

Brideshead reverbera nos ouvidos de Charles e acciona uma série de respostas imediatas, instintivas, a um estímulo que antes de ser (ou por ter deixado de ser) visual, imagético, é simbólico. Recuperando a alegoria da masmorra, e citando o narrador quando pela primeira vez percorre os salões silenciosos da mansão, é como se “light streamed through the cracks in the shutters” (BR 39). Brideshead enquanto signo é já gatilho emocional, que a memória – e não a história – transforma em símbolo.

Quando Sebastian se afasta da família e viaja pela Europa, terminando os seus dias num mosteiro em Marrocos, Charles, para quem ele fora o “forerunner” (BR 245) nessa vivência avassaladora chamada amor, vê em Julia uma réplica da memória física e psíquica – excepção feita à propensão para o alcoolismo desregrado – do amigo, réplica essa já evidenciada, aliás, no primeiro encontro: “Her voice was Sebastian’s and his her way of thinking” (BR 73). Tal identificação prossegue:

She so much resembled Sebastian that, sitting beside her in the gathering dusk, I was confused by the double illusion of familiarity and strangeness. (…) Her dark hair was scarcely longer than Sebastian’s, and it blew back from her forehead as his did; her eyes on the darkling road were his, but larger; her painted mouth was less friendly to the world. (BR 74)

Mas a certeza de que um irmão pode, ainda que temporariamente, substituir outro irmão nos afectos de Charles é revelada na descrição de uma paixão nascente à espera de ser cumprida:

On my side the interest was keener, for there was always the physical likeness between brother and sister, which, caught repeatedly in different poses, under different lights, each time pierced me anew; and, as Sebastian in his sharp decline seemed daily to fade and crumble, so much the more did Julia stand out clear and firm. (BR 172)

Julia e Sebastian sugerem, assim, na sua essência, a (pré)existência do outro, fazendo com que, a partir de certa altura, o protagonista os ame igualmente, fundindo-lhes corpo e alma: “I had not forgotten Sebastian. He was with me daily in Julia; or rather it was Julia I had known in him, in those distant Arcadian days” (BR 288).

II

Na primeira parte do romance é-nos apresentada uma cidade universitária feita de aguarela (“Oxford, in those days, was still a city of aquatint” [BR 23]) e apelos arcádicos, estratégia descritiva que fomenta a cristalização desse período da vida de Charles como um tempo de intenso envolvimento nos estudos, nas tertúlias regadas a vinho e incensadas a charuto e no idílio homoerótico, muito platónico, com Sebastian. Oxford traz consigo “the soft airs of centuries of youth” (BR 23); e Charles faz desse património de memória colectiva uma sua recordação individual. No entanto, já ali, a História ocupa o seu lugar. Exemplos disso são a descrição de uma caveira rodeada de rosas com a inscrição Et In Arcadia Ego, lembrando a fugacidade do tempo (vanitas) e a iminência da morte (memento mori); e o episódio de meta-literatura em que Anthony Blanche, o mais esteta dos seus amigos, recita na via pública “The Waste Land”, poema modernista de T.S. Eliot. Waugh alarga neste excurso a ideia de “terra devastada” à dessacralização posterior de Brideshead aquando da sua requisição pelo exército durante a guerra e à definitiva destruição de uma certa ideia de aristocracia moribunda, caída em desgraça quer pelas vicissitudes de uma sociedade em mutação, quer pela sua incapacidade de fazer justiça ao peso que a própria história enquanto contínuo cronológico lhe confere. Exemplos disso são as declarações de Bridey sobre a venda da casa de Londres (“You know it’s being pulled down? My father’s selling it. They’re going to put a block of flats here. They’re keeping the name – we can’t stop them apparently” [BR 209]), e a recusa do próprio Lord Marchmain, um inadaptado por natureza, em desempenhar as funções que lhe foram legadas pela tradição (“It has been my tragedy that I abominate the English countryside. I suppose it is a disgraceful thing to inherit great responsibilities and to be entirely indifferent to them” [BR 96]).

Waugh, que em obras anteriores já gizara, pelo menos em título, uma estética da degenerescência (Decline and Fall [1928] e A Handful of Dust [1934]) exibe aqui o negativo da sua pluma sarcástica, porque o tema é mais solene, ainda que não descure a espaços a fina ironia que caracteriza o seu estilo. O tom elegíaco é predominante e, justificando-o, Brideshead representa o regresso a um estado de graça primordial (“I, at any rate, believed myself very near heaven, during those languid days at Brideshead” [BR 77]) assim como o urso de peluche de Sebastian (Aloysius), que o acompanha em tudo, representa um regresso (e regressão) à infância, um lugar profanado pela entrada na vida adulta e pelos deveres dos quais tenta desviar-se. Como Michael Schudson conclui em The Collective Memory Reader (), “not only does the past, as Freud says, live in people’s mental life, people’s mental life lives in the past” (). Charles luta, assim, contra a ideia de civilização como “a heap of broken images” (Eliot, de novo), erigindo através da memória, um paraíso perdido e uma certa ideia de “Englishness” evocada em parte nas páginas da revista Country Life e mesmo nos quadros musicais do compositor Vaughan Williams que muito fez, nos anos 20, por conferir um poder ascético à paisagem típica inglesa (ouça-se, por exemplo, The Lark Ascending).

Charles é, para Waugh, instrumento de refutação de uma concepção disruptiva – e mesmo bárbara – da história, uma história que não suspende o sujeito na crença dos espaços e instituições que formataram a sua identidade: Oxford e Brideshead. Em suma, e recuperando Nora, uma história que não pára o tempo. Por essa razão, motivado por uma resistência ao discurso prevalecente do individualismo e materialismo burgueses, Waugh edifica um contra-discurso de devoção aos valores aristocráticos, estéticos e religiosos que os Flyte representam (). Charles, num percurso paralelo ao de Sebastian, embora sem o pendor para o auto-sacrifício, exila-se, contra mundum, nesse labor de memória em pausa que é a pintura de edifícios vetustos e arcanos, barrocos e classicistas (“I loved buildings that grew silently with the centuries, catching and keeping the best of each generation” [BR 215]), legitimação última de como um lugar de memória se transforma, in situ, na memória de um lugar. Tais edifícios, “the boundary stones of another age, illusions of eternity” (), são o espelho de uma nação no limiar da extinção:

In such buildings England abounded, and, in the last decade of their grandeur, Englishmen seemed for the first time to become conscious of what before was taken for granted, and to salute their achievement at the moment of extinction. (BR 215-6)

O sucesso profissional de Charles é, pois, sintoma desse declínio, como se pode ler no seguinte excerto:

The financial slump of the period, which left many painters without employment, served to enhance my success, which was, indeed, itself a symptom of the decline. When the water-holes were dry people sought to drink at the mirage. After my first exhibition I was called to all parts of the country to make portraits of houses that were soon to be deserted or debased; indeed, my arrival seemed often to be only a few paces ahead of the auctioneer’s, a presage of doom. (BR 216)

De facto, Charles institui na urgência da pintura a solenidade quase sepulcral do acto comemorativo. Em breve, desses lugares de memória pouco restará se os grupos sociais a eles associados cessarem de existir ou sofrerem mutação significativa enquanto materialização de identidade nacional, imperial ou política (). Em breve, memória e luto fundir-se-ão. Como pintor, portanto, Ryder corporiza o zelo do arquivista, “taking inventory of the material signs of a fading aristocratic tradition, which he, with prophetic tone, denounces as a sign of the downfall of England itself” ().

Se para um dos camaradas militares do capitão Ryder, no epílogo, o comentário que a velha casa inspira é o de “worst place we’ve struck yet” (BR 325), para este ela ainda representa, por via desse “winged host that soared about me one grey morning” (BR 215) – a memória – um mundo de harmonia e beleza (“a world of its own of peace and love and beauty; a soldier’s dream in a foreign bivouac” [BR 306]). Legitimada pela história, mas dela escapando – sendo alada, possuindo asas –, é ela a guardiã veneranda dos nossos mitos, mitos que a própria literatura contempla, desfaz e volta a erguer, continuamente.

Num prefácio escrito para nova edição da obra, em 1959, Waugh confessa:

It was impossible to foresee, in the Spring of 1944, the present cult of the English country house. It seemed then that the ancestral seats which were our chief national artistic achievement were doomed to decay and spoliation like the monasteries in the sixteenth century. (BR 8)

O espanto, para ele legítimo, perante a ténue sobrevivência dessa instituição inglesa será atenuado ao longo de décadas por um revivalismo de cariz saudosista, sem deixar de problematizar a queda e o declínio que a levaram a ser uma sombra do que fora em tempos. Encontramos, aliás, um exemplo recente deste fascínio em programas de televisão como The Country House Revealed (2011) apresentado pelo historiador Dan Cruickshank. E para não irmos mais longe, basta recordar o êxito sem precedentes que conheceu a famosa adaptação de para série, em 1981, onde pontificaram Jeremy Irons, Anthony Andrews, John Gielgud e Laurence Olivier. Sinal evidente de que o leitor/espectador partilhará com o romance uma obsessão necrófila pelos esplendores do passado e que acolherá intimamente a certeza avançada por Jeremy Paxman em The English: A Portrait of a People de que “no Englishman ever really escapes the institutions which made him” (cf. ). Também o cinema legitima, assim, a conclusão de Nora de que “memory has been promoted to the centre of history: such is the spectacular bereavement of literature” ().

Na sua propensão para o pictórico, Charles Ryder é o anfitrião de Brideshead que melhor nos serve, colhendo ao longo da sua educação sentimental elementos de suspensão da história e de perpetuação da memória, mesmo quando ambas nos são reveladas por outras personagens. Atente-se no episódio iniciático do piquenique a dois:

On a sheep-cropped knoll under a clump of elms we ate the strawberries and drank the wine (…) and we lit fat, Turkish cigarettes and lay on our backs, Sebastian’s eyes on the leaves above him, mine on his profile, while the blue grey-smoke rose, untroubled by any wind, to the blue-green shadows of foliage, and the sweet scent of the tobacco merged with the sweet summer scents around us and the fumes of the sweet, golden wine seemed to lift us a finger’s breadth above the turf and hold us suspended. (BR 26)

Se os lugares de memória imaterializam o material (cf. ) este instante debaixo das árvores cumpre tal desígnio; sabemo-lo pela vívida, sinestésica recordação que dele guarda Charles. No entanto, é Sebastian que nos dá a chave de uma felicidade que depende dessa escavação do passado que é a memória quando suspira:

Just the place to bury a crock of gold’ (…) ‘I should like to bury something precious in every place where I’ve been happy and then, when I was old and ugly and miserable, I could come back and dig it up and remember. (BR 26)

Não será Sebastian o arqueólogo de Brideshead, mas Charles, cujo pai vive em permanente ligação com o passado, coleccionando amorosamente peças e artefactos de antigas civilizações. Naquela que será a penúltima vez em que se afasta da mansão, antecipando um hiato de cerca de dez anos, o protagonista manifesta uma estranha consciência de natureza dupla: ele é simultaneamente artefacto arqueológico a ser desenterrado juntamente com todas as outras recordações (porque também ele fica para trás) e é o sujeito-fantasma que empreenderá essa revisitação prometida, tentando encontrar um qualquer “crock of gold” providencial que o faça sentir-se, de novo, vivo.

But as I drove away and turned back in the car to take what promised to be my last view of the house, I felt that I was leaving part of myself behind, and that wherever I went afterwards I should feel the lack of it, and search for it hopelessly, as ghosts are said to do, frequenting the spots where they buried material treasures without which they cannot pay their way to the nether world. (BR 163)

Esse encantamento que a memória, sempre caprichosa e sádica, nele exerce, a ponto de o fazer temer quebrá-lo, tem ainda num último assomo de ternura entre duas personagens que, relutantes, se despedem uma ressonância clássica. Julia e Charles regressam do jardim à noite e este sente-se transportado para os versos da Ilíada:

We shut the windows behind us and the voices ceased; the moonlight lay like hoar-frost on the terrace and the music of the fountain crept in our ears; the stone balustrade of the terrace might have been the Trojan walls, and in the silent park might have stood the Grecian tents where Cressid lay that night. (BR 280)

Ao contrário da perspectiva de Coward, que trata de forma risível a herança latifundiária e classista inglesa (leiam-se os versos “We are the products of those homes serene and stately/ Which only lately/ Seem to have run to seed” [Coward 14-16] e “The stately homes of England/ We proudly represent/ We only keep them up for/ Americans to rent” [Coward 17-20]) Waugh parece querer conferir-lhe uma réstia de prestígio estóico, digno de um proverbial stiff upper lip. O passado de Charles não será “a foreign country”, como L.P. Hartley advoga num romance de 1951 (The Go-Between), mas talvez seja o mais íntimo país que conhece, negando-lhe o desejo de (re)conhecer outros. Esse passado não é, não pode ser, para ele “a thought to fade and vanish like smoke without a trace” (BR 288); antes deve permanecer, ad aeternum, inscrito na memória, como “a small red flame (…) burning anew among the old stones” (BR 331). É através dessa chama periclitante – também ela indício de conversão religiosa – que o narrador pesa a desilusão de regressar a um lugar sem que o tempo desse lugar seja o tempo em que nele viveu. É, porém, nesse frágil equilíbrio que a memória de Nora persiste, entre lembrança e esquecimento, vulnerável a manipulações e apropriações, muitas vezes adormecida, tantas vezes renascida e quase sempre acossada, deformada e petrificada pelo devir histórico (). De igual modo, recentra o acto de rememoração no âmbito do sagrado (ibidem 9), que o luto enquanto linguagem de perda (simbólica ou não) legitima. é, finalmente, o romance-lugar de um tempo histórico e, simultaneamente, portal temporal para um lugar mitológico reconstruído individualmente para benefício, e sobrevivência, de uma memória colectiva. E nesse esforço, dir-se-ia que é o único edifício que não se fica pela ilusão de eternidade.