Mais de cem anos depois da morte de Thoreau, em 1975, a televisão e rádio pública do Canadá, a Canadian Broadcasting Corporation (CBC), encomendou uma obra ao compositor norte-americano John Cage para ser apresentada no ano seguinte, em 1976, nas comemorações do bicentenário dos Estados Unidos da América. O produtor musical da CBC sugeriu a Cage que este compusesse a partir de textos de Benjamin Franklin, já que a obra homenagearia o nascimento do seu país. No entanto, Cage não seguiu a sugestão e, em vez de escolher Franklin, escolheu Thoreau, um dos americanos que mais admirava e que mais inspirou a sua obra.

Cage compõe então Lecture on the Weather (1976), uma lecture performance composta a partir de textos de Thoreau, nomeadamente a partir de excertos de . A obra está divida em quatro partes: um texto inicial que corresponde à leitura de um prefácio escrito por Cage e outras três partes que correspondem à leitura por doze intérpretes, em simultâneo, dos vários excertos dos textos de Thoreau. Cada uma destas três partes faz-se ainda acompanhar por diferentes sons gravados pela compositora Maryanne Amacher: na primeira parte pode ouvir-se o som de vento, na segunda, de chuva e na terceira, de tempestade. Nesta última parte, as luzes vão progressivamente diminuindo até à plena escuridão do espaço e pode ver-se a projecção de um conjunto de imagens organizado pelo artista visual Luis Frangella, imagens essas que mais não são do que vários negativos de desenhos de Thoreau publicados em Journal. Thoreau é claramente uma escolha deliberada de Cage, mas os vários excertos do escritor norte-americano a incluir em Lecture on the Weather não são, no entanto, uma escolha sua, são antes o resultado das suas usuais operações de acaso feitas a partir do método utilizado no livro I Ching. A colagem final é então uma teia de vários pedaços de três obras de Thoreau que não está sujeita a qualquer ordem ou organização específicas.

Os doze intérpretes leem um conjunto de textos colados ao acaso, onde em cada um desses textos há desenhos de Thoreau que representam silêncios, sugerindo a cada intérprete que pause a sua leitura no momento em que encontra o desenho, seja ele no meio ou no final de uma frase (Figure 1). Cada conjunto de textos deve ainda ser lido dentro de uma moldura temporal entre 22’45’’ (vinte e dois minutos e quarenta e cinco segundos) e 36’24’’ (trinta e seis minutos e vinte e quatro segundos). Esse intervalo corresponde à multiplicação, entre cinco a oito vezes, da moldura temporal 4’33’’ (quatro minutos e trinta e três segundos), a duração da peça mais famosa de Cage, mais conhecida por peça silenciosa, mas cujo título é exactamente a sua duração, o seu tempo, ou seja, 4’33’’.

Figure 1 

Página de Lecture on the Weather (1976), de John Cage, correspondente a uma parte do texto de um só intérprete.

Esta obra, composta e apresentada pela primeira vez em 1952, pressupõe que nenhum som intencional seja produzido. Na estreia, o pianista David Tudor apenas se sentou ao piano, abrindo e fechando o seu tampo entre os três andamentos em que está dividida a obra, não tocando, no entanto, qualquer nota musical. Cage não tinha prescrito qualquer som na sua notação porque queria chamar a atenção do público, partindo intencionalmente do vazio notacional, para todos os outros sons não intencionais que estavam a ser produzidos. Uns pelo próprio público e outros oriundos do exterior da sala de concertos. Na verdade, como Cage concluiu, o silêncio não existe, o som está sempre presente ainda que não lhe prestemos atenção. Para tal, não quis impor, nem escolher, e muito menos organizar determinados sons; aceitou-os simplesmente, tal como eles naturalmente acontecem. Cage tinha construído uma obra “vazia” para que tudo o resto a pudesse “preencher”. Por outras palavras, Cage queria que o público, tal como ele, aceitasse a música que já acontece, em vez de ouvir, ou ficar na expectativa de ouvir, algo imposto por um autor. 4’33’’ configura-se como uma moldura temporal enquanto forma de aceitação dos sons que nos rodeiam, como uma casa de vidro aberta ao exterior, uma enorme transparência acústica e visual para todo o tipo de acontecimentos exteriores não-intencionais. A peça silenciosa de Cage consagra a descoberta, a audição e a observação de acontecimentos que entram no domínio da experiência quotidiana, da experiência da percepção da natureza e do mundo.

Cage quis que todas as suas obras compostas depois de 1952 fossem uma espécie de continuação da sua peça silenciosa, quer se tratassem de obras do domínio exclusivamente musical ou sonoro, quer se tratassem de obras de carácter multidisciplinar. Aliás, a duração da leitura de cada um dos intérpretes de Lecture on the Weather não é mais do que a soma de vários 4’33’’. Para além disso, a ideia de Cage de que os sons do ambiente são música e podem integrar uma obra de arte musical, sejam eles uma produção humana, sejam eles produzidos por toda a natureza, não é propriamente uma ideia original sua, mas uma ideia que também descobriu em Thoreau. Como o escritor norte-americano afirmou: “Music is continuous; only listening is intermittent” (). Cage chegou a dizer que quando fazia longas caminhadas, muitas delas para apanhar cogumelos – em que ele era um especialista –, costumava dirigir a sua peça silenciosa, absorvendo todo o tipo de sons e imagens que o rodeavam ao longo do seu percurso na floresta. 4’33’’ é uma obra de Cage, claro, mas não é apenas interpretada em salas de concerto ou em espaços mais ou menos convencionais; está em todo o lado, bastando para isso que prestemos atenção, ouvindo e observando o que nos rodeia.

Na verdade, existem em de Thoreau infinitas peças silenciosas. Muitas das passagens dos seus textos revelam-se como relatos de pequenas peças perceptivas, pequenas obras silenciosas da experiência imediata apreendidas a partir de um fluxo duracional do momento presente. Nas palavras de Thoreau, escritas em Walden:

In any weather, at any hour of the day or night, I have been anxious to improve the nick of time, and notch it on my stick too; to stand on the meeting of two eternities, the past and future, which is precisely the present moment; to toe that line. (21)

Mas como analisar este tempo presente da experiência? Como perceber que a experiência está de certa forma contida no momento que agora corre, se esse agora já não é mais agora porque já passou? Como compreender o presente se ele parece não ter duração? Estamos habituados a pensar sobre o tempo como uma linha contínua que liga passado, presente e futuro, onde o momento presente, no entanto, se apresenta como uma barreira divisória entre passado e futuro, um instante indivisível que existe, mas não dura, ao contrário de passado e futuro que são vistos como tendo duração. Como se o tempo fosse um carro que se cruza connosco em sentido contrário. Vem do futuro, passa ao nosso lado, no instante presente, e fica para trás, no passado.

Antes de mais, Thoreau não compreendeu apenas a importância do momento presente – e já se prosseguirá a discussão sobre este presente – para a sua experiência perceptiva diária, como também experienciou a natureza cíclica do tempo. O tempo, longe de poder apenas ser considerado como uma infindável e progressiva linha contínua, tem também de ser entendido, na sua relação com a natureza e a experiência humana, como um ciclo. No dia 18 de Abril de 1852, Thoreau escreveu em Journal: “For the first time I perceive this spring that the year is a circle – I see distinctly the spring arc thus far. It is drawn with a firm line” (127). Visto como um ciclo, o tempo já não pode ser entendido simplesmente como um carro cuja trajectória é apenas uma linha recta, mas uma enorme roda, progressivamente em andamento sobre uma linha contínua, sim, mas em constante rotação sobre si própria, exactamente por ser roda. Compreendido deste modo, o tempo, ainda que esteja sempre a fluir numa progressão contínua, é apreendido enquanto conjunto de durações preenchidas por certos fenómenos naturais que se vão repetindo. Thoreau não só apreende o tempo deste modo, como também estrutura o seu discurso da experiência a partir das estações do ano, como em Walden, ou de acordo com a passagem dos dias, como em Journal.

A nossa percepção do fluxo temporal depende então de dois factores em simultâneo e, por paradoxal que possa parecer, depende ao mesmo tempo da natureza da sua irreversibilidade e da nossa consciência da repetição cíclica de certos fenómenos da natureza. Esta repetição cíclica está aliás expressa nos nossos calendários e nos nossos relógios, um tempo de grandeza mensurável, um tempo quantitativo. O ponteiro do relógio, porém, como comenta Henri Bergson, não faz mais do que dividir a duração do tempo como quem divide o espaço. Claro que também apreendemos o tempo deste modo, quantificando-o e atribuindo a cada nova posição do ponteiro do relógio um novo instante e à diferença entre posições dos ponteiros uma quantidade temporal, um espaço de tempo. No entanto, a explicação de Bergson sobre o modo como experienciamos o tempo presente contraria a sua quantificação, privilegiando, ao contrário, a sua natureza qualitativa, numa perspectiva em que o tempo presente se constitui como uma duração, uma continuação qualitativa de algo que já não é para algo que ainda é. A nossa apreensão do tempo então, segundo Bergson, é uma espécie de memória do próprio escoar do tempo, como algo que prolonga o antes no depois, unificando-os. Esse tempo como duração compreende assim um movimento progressivo que liga o que já passou ainda agora com o que ainda corre agora, impedindo que o prolongamento do antes no depois desapareça na fugacidade do momento presente. Um dos exemplos que Bergson refere na sua obra para a experiência desta duração é o seguinte: podemos fechar os olhos e passear o nosso dedo sobre uma superfície de papel; e só ao abrirmos os olhos é que conseguimos ver a linha traçada pelo percurso do nosso dedo, até lá percebemos interiormente a duração (45). Visto a partir desta perspectiva, o momento presente de que nos fala Thoreau não só tem duração, como deixa de ser uma linha divisória entre o que já passou e o que há-de vir para ser, ao invés, uma linha de união que liga progressivamente os momentos imediatamente anteriores aos momentos imediatamente posteriores. O momento presente é um agora duracional qualitativo, indistinto e inquantificável.

Viver intensamente o presente, vivendo a partir da experiência de cada agora duracional, fez com que Thoreau se preocupasse mais com o que os seus sentidos iam captando a cada momento presente do que com qualquer abstracção, conceptualização ou relação com pensamentos passados. Trata-se da primazia da experiência sensorial do que está a acontecer face à intelectualização do que já aconteceu. Como se vivesse sempre tudo pela primeira vez. Quando escreve em Walden que lamenta não ser tão sábio como no dia em que nasceu, Thoreau está também a dizer que prefere a experiência pura, não-reflexiva, à experiência mediada pela inteligência. “My head is hands and feet” (106), escreve Thoreau. E as mãos e os pés não têm conceitos. Como nos diz Paul Valery: “seeing is forgetting the name of the thing one sees” (). Só quando não atribuímos um conceito a determinado objecto poderemos começar a percepcioná-lo atentamente e a partir daí apreender as suas propriedades, as suas cores, as suas linhas, o seu movimento, o som que produz, a sua transformação. É esta a contemplação pura e subjectiva que consegue capturar o natural num momento presente e sempre único. Nas palavras de Thoreau, escritas no seu diário, a 4 de Outubro de 1859:

It is only when we forget all our learning that we begin to know. I do not get nearer by a hair’s breadth to any natural object so long as I presume that I have an introduction to it from some learned man. To conceive of it with a total apprehension I must for the thousandth time approach it as something totally strange. (…) You must get rid of what is commonly called knowledge of them. Not a single scientific term or distinction is the least to the purpose, for you would fain perceive something, and you must approach the object totally unprejudiced. You must be aware that no thing is what you have taken it to be. ()

Thoreau quis voltar-se para a descoberta da experiência actual, aceitando os fenómenos naturais antes de os distanciar e fixar nas determinações da inteligência. As construções que minam o nosso conhecimento apenas nos direccionam para o que há de universal e determinado nos fenómenos. Mas se esquecermos esse aspecto formal do que aprendemos talvez sejamos capazes de encontrar o que neles existe de particular e indeterminado.

Foi ao reflectir sobre a natureza do particular e sobre a relação entre particulares e universais que Brian John Martine ficou interessado em discutir a noção de inteterminação. Em , o livro que escreveu a este propósito, Martine defende que não podemos continuar a supor que podemos limitar com sucesso os “muitos” dentro das fronteiras de “um” ao reduzirmos a diferença à semelhança. O que não significa que não possamos compreender o mundo, significa apenas que não nos é possível dar uma resposta totalmente determinada de algo que inclui aspectos e dimensões indeterminadas (Martine 42). Somos confrontados com um mundo repleto de variedade aparentemente infinita, mas lutamos constantemente por marcar fronteiras que irão de alguma maneira dar sentido às formas confusas das aparências evasivas da nossa experiência. Todos temos a tendência para limitar e definir. Na verdade, a determinação parece mesmo ser uma função natural e também necessária do modo como pensamos. Pensamos, logo determinamos. E quando determinamos traçamos linhas, carregamos nos contornos, circunscrevemos, categorizamos, classificamos e definimos sistematicamente. Acabamos por querer determinar tudo, mas nem tudo pode ser determinado. Como Martine explica:

The lines that we draw as we form categories and classes, principles and laws, are drawn always against the background of direct experience. They are drawn by contrast with the indeterminate shapes and contours of a world that will continue to resist any effort to completely confine it within the determinately structured bounds of traditional reflective schemes. (xiii)

Essas linhas que traçamos, diz ainda Martine, são como as linhas dos mapas que circunscrevem e dividem diferentes espaços no mundo. O que só nos traz dificuldades. Significa ficar tão ligado ao mapa que o original acaba por se perder por negligência ou, em tantos outros casos, porque o descartámos conscientemente em favor do mapa. Começamos a esquecermo-nos que o mapa foi elaborado apenas com o intuito de oferecer um melhor e mais completo entendimento do mundo. O mapa é uma ferramenta extremamente útil, uma vez que pode de facto reformar as nossas noções de espaços mapeados. No entanto, como defende Martine, não podemos correr o risco de confundir o mapa com o mundo porque quando o fizermos corremos o risco de não só compreender mal o mundo, mas também de destruir o significado do mapa. As fronteiras determinadas que surgem no decorrer das nossas tentativas de tirar sentido da nossa experiência imediata podem levar-nos ao encontro de uma nova e melhor compreensão dessa experiência, mas apenas se nos lembrarmos que elas são fronteiras que nós próprios estabelecemos e que, por muito seguras que nos possam parecer, elas permanecem abertas à mudança ou mesmo à completa dissolução (Martine: 114).

As linhas do mapa de que Martine nos fala são por isso como as ideias universais que nós próprios instituímos por convenção de modo a conseguirmos organizar o nosso conhecimento. Essas ideias são fruto de generalizações que resultam da eliminação das diferenças, para apenas ficarmos com as semelhanças, com os traços comuns, e por isso mesmo contrastantes com a realidade dos fenómenos existentes e com a nossa experiência imediata desses mesmos fenómenos. Mas Cage parece querer proporcionar-nos a experiência em bruto, sem estar filtrada por convenções e sem adaptar nenhum esquema conceptual capaz de a acomodar ou organizar. A obra de Cage, partindo das ideias de Thoreau, reaproxima o espectador da singularidade de cada momento da experiência que apenas se alcança no momento presente. Como Cage revela numa entrevista:

If you become open to the world outside of your ideas about it – I mean really attentive to the world outside of you, which you can perceive through your eyes and ears primarily – then you become a Thoreau unto yourself. The pavement you’re standing on can become fascinating, or the way the light falls on two different Coca-cola bottles. So we come to a poetic awareness of the uniqueness of each experience, of the necessity to have the experience at the moment it presents itself because it’s constantly changing. There’s no other time to leave than each moment. ()

É talvez neste sentido que Cage procura uma relação com o mundo numa espécie de inocência pré-racional. A escolha de Thoreau é neste aspecto bastante reveladora, reforçada ainda pelo modo como Cage reconfigura os seus textos num processo que vai ao encontro de uma recepção mais fiel da experiência. O resultado parece ser então uma poética que procura uma experiência não mediada pela razão ou, pelo menos, uma poética que ressalva a importância da experiência empírica para uma compreensão mais alargada do mundo. Na verdade, reduzimos a complexidade do nosso fluxo da experiência bruta a uma simplicidade conceptual. Como nos diz , associamos uma sensação de redondo a uma sensação posterior de redondo tanto à mesma moeda como a duas moedas diferentes, obedecendo às exigências da simplicidade dos nossos esquemas conceptuais e ao nosso quadro global do mundo (233). Mas não deveremos concluir que tudo o que existe depende dos nossos esquemas conceptuais. Tudo o que há no mundo não depende de palavras. Talvez Cage nos queira fazer compreender que a nossa capacidade racional nos pode afastar do conhecimento sensível e das suas circunstâncias particulares e casuais. E talvez por isso nos queira possibilitar a descoberta, perturbando a nossa confiança convencional e as nossas estruturas conceptuais profundas que estão na base dos nossos diversos encontros com o mundo e, sobretudo, com as nossas representações desses encontros. O mesmo será dizer que Cage propõe a descoberta do lado complexo e indeterminado da experiência, ao desafiar e contrariar a construção de modelos coerentes que tentam descrever a ordem das coisas.

Cage quer proporcionar-nos então um modo particular de falar sobre o mundo e de como a experiência pura é importante para o podermos conhecer. E fá-lo a partir de Thoreau, claro, mas também a partir da forma de Lecture on the Weather enquanto processo dinâmico. Nas palavras de Cage, fazendo a distinção entre estrutura e processo:

A structure is like a piece of furniture, whereas a process is like the weather. In the case of a table, the beginning and end of the whole and each of its parts are known. In the case of weather, though we notice changes in it, we have no clear knowledge of its beginning or ending. At a given moment, we are when we are. The nowmoment. (178)

Não é por acaso que Cage relaciona a obra de arte, enquanto processo dinâmico, ao tempo meteorológico, uma vez que as suas obras, e Lecture on the Weather por maioria de razão, expressa desde logo pelo título, se comportam como a dinâmica dos processos naturais. Esta peça de Cage comporta-se como um sistema meteorológico ele próprio, comportamento ainda enfatizado pelos sons de vento, chuva e trovoada. Lecture on the Weather é a imitação da natureza no seu modo de operar, expressa no seu modo de formar como um sistema aberto, dinâmico, imprevisível e indeterminado.

Contrariamente à perspectiva de Cage, existe porém uma visão determinista do mundo, ou aquilo a que podemos chamar determinismo científico. Esta perspectiva assenta na ideia de que o mundo se comporta de tal forma que os fenómenos podem ser racionalmente previstos, se for fornecida uma descrição precisa dos estados passados desses mesmos fenómenos, em conjunto e em harmonia com as leis da natureza. O filósofo apresenta uma excelente imagem para este determinismo, proposta que o próprio rejeitará. E a imagem é a seguinte: o mundo determinista é como um filme onde a imagem que está a ser projectada é o presente, as imagens que já foram projectadas, o passado, e as imagens por projectar, o futuro, mas onde esse futuro, tendo uma relação causal com o passado, se apresenta como fixo porque determinado pelos fotogramas anteriores. Ou seja, esse futuro pode ser visto, diz Popper, como estando contido no passado, tal como um pintainho dentro de um ovo (91). O futuro tornar-se-ia então redundante, seria supérfluo e não necessário. Para contrariar a teoria determinista, Popper, para além de dar conta de alguns acontecimentos naturais imprevisíveis, tais como o comportamento das nuvens ou as variações meteorológicas, explica que os resultados que serão obtidos durante o crescimento do nosso conhecimento são também eles imprevisíveis; não poderemos antecipar hoje o que conheceremos amanhã (62). O argumento decisivo para o indeterminismo de Popper é então a existência do próprio conhecimento, acompanhado do nosso modo de experienciar a mudança e o fluxo de tempo, a nossa experiência consciente.

Quando ouvimos doze discursos em simultâneo em Lecture on the Weather, e ainda que consigamos distinguir vozes diferentes, dificilmente conseguiremos seguir apenas uma e impossível será compreendê-las a todas. O discurso de cada uma dessas vozes deixa de se compreender no seu todo e muito provavelmente só conseguiremos detectar fragmentos entre outros tantos fragmentos que vão impossibilitando uma linearidade discursiva. Perdemos o sentido de uma possível unidade textual, mas ganhamos uma multiplicidade discursiva do pensamento de Thoreau. Lecture on the Weather é uma paisagem de discursos, tal como uma paisagem natural. A escrita tem a nossa concepção linear do tempo. Na verdade, a linguagem configura-se como um processo contínuo e inter-relacional que limita as nossas mentes a pensar de modo linear num processo passo-a-passo. É por essa mesma razão que quando não estamos a compreender alguém dizemos “não te estou a seguir”. O homem apenas consegue caminhar num único trilho, mas o que o rodeia vai para lá da simples linha do seu percurso, também ela parte integrante do seu mundo múltiplo e em constante mudança.

Em resposta à ideia de Norman O. Brown de que a sintaxe é um arranjo de ordem militar e ao comentário de Thoreau de que quando ouvia uma frase, ouvia pés a marchar, Cage começou a dedicar-se àquilo a que apelidou de linguagem desmilitarizada. A multiplicidade discursiva disponibilizada por Cage, gerando um texto quase incompreensível, funciona também como uma chamada de atenção para o discurso enquanto construção legislada; não uma correspondência directa com a realidade, mas uma possível verdade construída a partir de leis. Como um exército em marcha, como um governo.

A primeira parte de Lecture on the Weather consiste na leitura de um prefácio escrito por John Cage, um texto político como enquadramento de toda a obra e em plena harmonia com a de Thoreau. Nesse prefácio, Cage conta que antes de decidir escolher os textos de Thoreau, tentou encontrar uma Antologia Americana que melhor se adequasse aos seus objectivos. Mas quando encontrou uma numa biblioteca infantil de Nova Iorque, uma antologia intitulada Documents of American History, escrita por adultos, numa abordagem que os adultos pensam ser a melhor para as crianças, Cage apenas se deparou com textos relacionados com as leis do seu país, entre eles discursos presidenciais ou vários juízos sobre diversas questões legais. Como se a história americana assentasse sobretudo nas leis que os sucessivos governos americanos implementam para desenvolver, ordenar e defender o seu país. De facto, uma das grandes preocupações do homem concentra-se nas leis: nas leis da natureza que incessantemente tem vindo a querer determinar; nas leis da gramática, onde tem medo de tropeçar; e nas leis governativas, construídas apenas por alguns, eleitos ou não democraticamente, para que nos rejam a todos. Ainda no prefácio, Cage explica a razão da escolha dos textos de Thoreau, sublinhando a importância da leitura do texto , dando conta da sua enorme influência em Gandhi, quando este se preparava para dedicar a sua vida à libertação da Índia, ou em Martin Luther King, na sua incessante luta contra a discriminação racial. Posto de forma mais resumida, Cage explica assim no prefácio o grande propósito de Lecture on the Weather:

I have wanted in this work to give another opportunity for us, whether of one nation or another, to examine again, as Thoreau continually did, ourselves, both as individuals and as members of society, and the world in which we live: whether it be Concord in Massachusetts or Discord in the world. (5)

Em plena sintonia com Thoreau, Cage pede ainda na partitura que os doze leitores de Lecture on the Weather sejam preferencialmente doze cidadãos canadianos expatriados, antes cidadãos americanos, numa clara homenagem a todos os americanos que abdicaram da sua nacionalidade e do seu país para não combaterem na guerra do Vietname. Lecture on the Weather é, desde o seu prefácio, enquanto conteúdo político, até à sua forma, enquanto metáfora epistemológica do mundo, e passando pela escolha dos seus intérpretes e pela escolha dos textos de Thoreau, uma obra que continua a questionar a nossa relação com a natureza e a convidar-nos a olharmos para nós próprios como seres dotados de uma consciência individual e ao mesmo tempo enquanto membros de uma sociedade, quer seja nos EUA, em Portugal, ou em qualquer outra parte do mundo, incentivando-nos a reflectir sobre os diferentes problemas que parecem ciclicamente repetir-se ao longo do tempo.